Raios de esperança no apagão de Mianmar

Mianmar já foi o maior exportador de arroz do mundo, um título hoje pertencente à vizinha Tailândia
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Na lama seca do delta do rio Irrawaddy, trabalhadores soldam as últimas peças de um duto de gás natural que, segundo os generais no poder do país, manterão as luzes acesas em Yangon, a principal cidade de Mianmar, após anos de apagões.

Moradores que por anos receberam oito horas por dia de eletricidade podem, em breve, ter o luxo de possuir uma geladeira que gele e televisões que fiquem ligadas.

Porém, isso não fará tanta diferença para uma moradora de 64 anos de Yangon, numa rua ao lado do lago e bloqueada pela polícia: Aung San Suu Kyi, ganhadora do Nobel e a dissidente mais conhecida do país.

Ela vive num blecaute, isolada da maioria das comunicações com qualquer pessoa fora de sua base murada.

Sua linha telefônica foi cortada anos atrás e ela não possui computador nem televisão, afirmou seu advogado.

Essas são as realidades conflitantes de Mianmar hoje.

Após anos de congelamento e estagnação, a mudança está chegando, mas apenas nos termos da junta que governa o país.

Há uma esperança comedida entre executivos e diplomatas de que Mianmar, ou Burma, como muitas pessoas ainda chamam o país, esteja saindo gradualmente dos anos de autoritarismo paranóico e de um gerenciamento econômico ao estilo soviético, que deixou grande parte da população do país, de 55 milhões, na mais absoluta pobreza.

Espera-se que uma nova constituição seja apresentada no final deste ano, e a junta planeja as primeiras eleições em duas décadas.

Analistas afirmam que as eleições provavelmente não serão inteiramente competitivas ou justas, mas que poderiam levar os militares a descentralizar um pouco do poder.

"Burma está passando por um divisor de águas crítico", disse Thant Myint-U, historiador e ex-membro das Nações Unidas que escreve extensivamente sobre o país.

"Estamos caminhando claramente em direção a algo diferente de uma hierarquia militar estrita com apenas um general no topo".

O que representa uma esperança em Mianmar é uma mudança incremental e a possibilidade de que os militares gradualmente desapareçam da política – permitindo que este país de amplos recursos, com uma terra tão fértil que já chegou a alimentar uma grande parte do império britânico, finalmente participe do dinamismo econômico ao seu redor.

São muitos os sinais de mudança.

Os militares, no poder há quase cinco décadas, emitiu autorizações para hospitais e escolas particulares – que não eram oficialmente permitidos antes.

O governo vendeu uma série de fábricas e ativos administrados pelo estado a colegas do setor privado e parece estar suspendendo algumas punições restritivas à posse de carros e motos.

O país dá alguns passos para reanimar suas problemáticas (porém potencialmente lucrativas) exportações de arroz.

Visitas a Mianmar por parte de economistas internacionais, incluindo equipes do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, costumavam ser "pérola aos porcos", disse um diplomata ocidental.

Mas isso mudou.

Joseph E. Stiglitz, economista ganhador do prêmio Nobel que visitou Mianmar em dezembro, afirmou que os ministros e oficiais militares que conheceu estavam ávidos por conselhos sobre como estimular o crescimento e promover a iniciativa privada.

Mianmar já viu falsas auroras antes.

Sempre é possível que os generais mudem de ideia e desistam da nascente liberalização.

No entanto, pelo menos uma mudança crucial é inevitável nos próximos anos.

O recluso líder da junta, o general sênior Than Shwe, mestre em manter seus opositores desestabilizados, tem 78 anos e nenhum sucessor óbvio.

Uma explicação comum para a mudança na direção é que Than Shwe está desmontando seu sistema de absoluto poder porque não quer que nenhum outro líder apareça para ferir sua família ou ameaçar a riqueza que aparentemente ele acumulou durante quase duas décadas no poder.

A questão de sua sucessão é cármica para o general, que colocou seu antecessor, Ne Win, em prisão particular e, segundo dizem, negou a ele tratamento médico antes de sua morte, em 2002.

Thant Myint-U, o historiador e ex-diplomata, afirmou que as principais tensões no país hoje estavam dentro do próprio exército, não entre os generais e Suu Kyi com seu movimento democrático.

"Fora do país, a situação é percebida como simples, com exército tentando perpetuar seu próprio domínio", disse ele.

"Dentro do país, todos sabem que uma forte competição estará a caminho dentro da elite, envolvendo não apenas os militares, mas também oficiais aposentados, burocratas seniores e uma classe empresarial emergente".

Militares estão fazendo campanha para as eleições como se suas carreiras dependessem disso, anunciando dezenas de projetos, incluindo o plano para fornecimento de energia elétrica 24 horas em Yangon, que, como eles esperam, ganhará a simpatia de uma população que em muitas partes do país os despreza.

Uma mudança crucial ocorreu na indústria do arroz, que possui potencial para aumentar a renda dos agricultores, a espinha dorsal do país que corresponde a dois terços da população.

Mianmar já foi o maior exportador de arroz do mundo, um título hoje pertencente à vizinha Tailândia.

"Me dê dez anos, que estaremos de volta", disse Tin Maung Thann, consultor de uma recém-criada associação da indústria do arroz.

"Claro que podemos nos tornar um grande exportador de arroz".

Uma série de programas patrocinados por governos estrangeiros no delta do Irrawaddy tem ajudado vilas produtoras de arroz a se recuperar dos dados causados por um ciclone que matou pelo menos 130 mil pessoas, há dois anos.

Agricultores estão sendo treinados para usar fertilizantes, sementes de arroz melhores e técnicas de agricultura mais modernas.

O governo tem dado poder à associação da indústria do arroz com o gerenciamento dos estoques do grão do país, uma mudança crucial em relação ao passado, quando generais que temiam escassez de arroz interrompiam as exportações a qualquer momento, suprimindo qualquer contrato que comerciantes de arroz tinham assinado com seus clientes.

Provavelmente as eleições que se aproximam não irão transformar a política de Mianmar.

A mídia é inteiramente controlada pelos militares.

Além disso, 2.100 ativistas políticos que em outras circunstâncias poderiam participar das eleições estão presos.

As eleições seriam as primeiras desde 1990, quando o partido de Suu Kyi, a Liga Nacional pela Democracia, obteve uma vitória esmagadora – resultado ignorado pelos generais e recentemente anulado.

No entanto, Sean Turnell, especialista em Mianmar da Macquarie University, na Austrália, afirmou que as eleições tinham criado uma janela para as mudanças econômicas, situação descrita por ele como similar à transição da Indonésia a partir do domínio socialista, na década de 1960.

"Não vejo a situação como uma liberalização coerente", ele disse.

"Mas as mudanças econômicas parecem ter acontecido quase que por acidente, e as pessoas estão agarrando o que podem".

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