Missão cumprida
Em fevereiro de 2011, a revista Planeta Arroz inaugurava em suas páginas a seção Entrevista. O objetivo era, a cada edição, dar a palavra a uma personalidade da cadeia produtiva do arroz. Na ocasião, o escolhido para abrir os trabalhos não poderia ser outro se não o recém-nomeado presidente do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), Cláudio Fernando Brayer Pereira. A expectativa em torno do novo dirigente era enorme, afinal, o setor vivia um momento de crise, com a superoferta do grão no mercado, preços achatados e produtores trabalhando no prejuízo.
Pereira, ou Batata, como é conhecido pelos amigos, tinha então um grande desafio pela frente. Prefeito de Santa Vitória do Palmar, havia deixado o cargo a convite do também recém-eleito governador do RS, Tarso Genro, para assumir a direção do Irga e por um fim à crise.
À luz do presente, é interessante observar nesta primeira entrevista como Pereira já estabelecia as bases do que seria sua estratégia de trabalho: reduzir os custos na lavoura, atacar a questão tributária, buscar junto ao governo federal alternativas para escoar a produção e aliviar o mercado, retomar o terminal da Cesa no Porto de Rio Grande e aumentar as exportações gaúchas de arroz, ampliar o campo das pesquisas com arroz e, talvez a tarefa mais difícil de todas, restabelecer o diálogo entre produtores e indústrias.
Naquela edição de 2011, o novo presidente encerrava a entrevista afirmando que faria uma reestruturação no Irga, extinguindo cargos de confiança e abrindo novas vagas através de concurso público. Missão cumprida. No dia 31 de dezembro de 2014, Pereira encerra sua gestão à frente de um dos maiores institutos de pesquisa de arroz do mundo e nada mais oportuno do que convidá-lo novamente a voltar às nossas páginas para fazer um balanço dos avanços e resultados obtidos nesses últimos quatro anos. Como dizia o título da primeira entrevista, Pereira soube colocar a lavoura de arroz acima das disputas políticas.
Planeta Arroz – Na sua avaliação, qual foi o maior desafio ao assumir a presidência do Irga em janeiro de 2011?
Cláudio Pereira – Na verdade, tivemos vários desafios, mas o maior de todos foi fazer a cadeia produtiva do arroz se entender. O Irga se postou como o agente articulador e organizador desta cadeia através da reativação da Câmara Setorial do Arroz. Passamos a fazer um debate sobre a cadeia como um todo, porque a cadeia é como uma corrente, se houver um elo mais fraco ela arrebenta. Era preciso abrir mão de algumas coisas e pensar no todo. E conseguimos. Estamos hoje em um momento muito importante e exemplar, inclusive para outras cadeias produtivas, sobretudo em relação à forma como os produtores, a indústria e o governo estão atuando em pontos que são fundamentais para o conjunto da cadeia.
Planeta Arroz – De que maneira o alinhamento entre os governos estadual e federal contribuiu para solucionar a crise que o setor enfrentava já há várias safras?
Cláudio Pereira – Primeiro houve a intervenção forte do governo a partir da compra do arroz e do estímulo às exportações para enxugar o mercado, que tinha muita oferta do grão. O governo federal, em um primeiro momento, disponibilizou R$ 1,2 bilhão para compras e para PEP, Pepro, AGF e EGF. Depois veio a negociação das dívidas e o governo disponibilizou mais R$ 1,5 bi. Também foi preciso olhar o mercado como um todo. O mercado interno não tem uma expansão vertical no sentido de consumir todo o arroz que a gente produz porque somos autossuficientes. E continuava entrando o produto do Mercosul. A estratégia que adotamos foi a de tentar ampliar nossa participação no mercado externo. A partir daí criamos condições para as empresas buscarem novos mercados através do programa Brazilian Rice, que articula a Associação Brasileira da Indústria de Arroz (Abiarroz), o Irga e a Apex. Hoje, o Rio Grande do Sul é um estado exportador de arroz.
Planeta Arroz – A ampliação do mercado foi importante, mas também havia a questão da oferta interna. Qual foi o papel da pesquisa na solução deste problema?
Cláudio Pereira –Trabalhamos em duas linhas. A primeira foi incentivar a rotação de culturas como alternativa para resolver problemas de sazonalidade de oferta do arroz. Conseguimos, porque a área plantada com soja no sistema de rotação aumentou de 60 mil hectares em 2011 para 300 mil hectares este ano, e deve chegar aos 320 mil hectares em 2015. Isso possibilitou ao produtor ofertar soja em vez de ofertar arroz na época da colheita e fez com que o preço ficasse mais alto no período. Também trouxe soluções técnicas de redução de custos, que é o grande problema da lavoura de arroz. Não é nem produtividade nem preço, é custo de produção. Isso proporcionou uma melhora na questão da renda do produtor ao longo do ano.
Planeta Arroz – Havia ainda outro fator agravante da crise, que era a entrada de arroz do Mercosul.
Cláudio Pereira – Esta questão nós resolvemos com o governo do estado através da tributação, dando retornos maiores de ICMS ou estímulo para as indústrias gaúchas que comprassem o arroz gaúcho no limite de 10% de arroz importado. Essa medida acabou desestimulando as importações do Mercosul. Com o aumento das exportações, menor entrada de arroz do Mercosul e a redução da oferta, os preços voltaram a subir. A soja proporciona que o arroz seja ofertado mais espaçadamente ao longo do ano, desconcentrando a oferta no período de colheita. Isso fez com que os preços ficassem mais altos o ano todo, permitindo que os produtores tivessem acesso a um preço mais alto, o que não acontecia antes. Os mais descapitalizados terminavam sempre tendo que vender o arroz em baixa e os capitalizados, em alta. Hoje, todos vendem o arroz em alta, o que é importante para recapitalizar o setor produtivo.
Planeta Arroz – O cultivo da soja em rotação com o arroz na Metade Sul já está consolidado. As pesquisas com o milho apontam para o mesmo caminho. Que avaliação o senhor faz deste trabalho?
Cláudio Pereira – Primeiro temos que olhar as oportunidades. Temos essas terras na Metade Sul que são 3,5 milhões de hectares de terras planas. Não são várzeas. São todas áreas irrigadas. Todas têm acesso ao sistema de irrigação licenciado ambientalmente, que é um dos grandes problemas hoje. É, por exemplo, o grande gargalo do programa Mais Água, Mais Renda, que o governo criou para estimular a irrigação no estado. Muita coisa barra no licenciamento ambiental não por ser proibida, mas demorada, o que também acaba gerando custos. Esses sistemas de cultivo que temos na Metade Sul estão todos licenciados. Então temos terra de qualidade, sistemas de irrigação e um produtor que está ali e usa muita tecnologia, que é o produtor de arroz. A partir da pesquisa técnica, da extensão rural e da experiência observada em outros países, passamos a ocupar mais essas terras da Metade Sul, dando não só ao produtor de arroz, mas para toda a Metade Sul, uma alternativa de desenvolvimento econômico através da soja. Temos 3,5 milhões de hectares com terras planas, usamos 1,1 milhão de hectares com arroz e ainda 300 mil hectares para soja, então, sobra ainda muita terra.
Planeta Arroz – Este salto qualitativo, na sua avaliação, foi também um passo decisivo para a diversificação da lavoura gaúcha?
Cláudio Pereira – Sem dúvida. Estas terras, ou ficavam com pecuária, geralmente de baixa intensidade, ou em pousio. Agora não, estão sendo usadas para o cultivo da soja. Mas ainda temos muito o que avançar em tecnologia. A soja é uma realidade, o milho ainda é uma promessa com grande potencialidade. Isso é fundamental para a consolidação da integração lavoura e pecuária, porque com a soja e com o milho o produtor pode ter pastagens de excelente qualidade. O milho fornece comida energética para o gado produzir mais carne, mais leite. O produtor amplia suas alternativas de renda.
Planeta Arroz – Com base nesses avanços, qual seria, na sua análise, o desafio para o próximo governo?
Cláudio Pereira – O desafio para o próximo governo é ter um programa de fomento principalmente para o milho em terras planas, porque com a tecnologia que temos hoje é viável. Em um passado recente houveram programas que não foram adiante por falta de tecnologia. Hoje, o Irga tem esta tecnologia. Agora está na hora de darmos outro salto de qualidade. Essa situação de termos arroz, soja, milho e pecuária é o combate à crise. O produtor está mais preparado para enfrentar o mercado porque dispõe em sua lavoura de uma diversificação de produtos para vender. Ao mesmo tempo, ao adotar um sistema integrado de produção ele termina reduzindo gastos, pois os custos com tratos culturais, fertilização e redução da aplicação de insumos, por exemplo, são diluídos ao longo do ano. A rotação de culturas nos ajuda a liquidar dois dos principais problemas do setor: a dependência de um só produto e o custo de produção.
Planeta Arroz – O senhor esperava um avanço tão rápido das pesquisas?
Cláudio Pereira – Realmente o avanço foi muito rápido. Os produtores necessitavam ter uma rotação de culturas. Ao plantar arroz depois de uma lavoura de soja é possível produzir 20% a mais. Eles passam a ter um incremento produtivo ainda maior do que vinham tendo. Inicialmente os produtores perceberam que com o preço da soja muito alto no mercado internacional valia a pena plantar soja mesmo não tendo tanta tecnologia. Tinham que adaptar variedades das terras altas para terras planas. Não tinham tecnologia de drenagem, ou seja, faziam a mesma drenagem que se faz para o arroz, o que não é suficiente. Aí entra o Irga com o desenvolvimento de uma nova variedade de soja adaptada para terras baixas: A TEC Irga 6070RR. O Irga também desenvolveu o plantio em microcamalhões e o sistema de irrigação por sulco, um conjunto de tecnologias que nós próximos anos não vai estar apenas à disposição do produtor, vai estar na mão dele e, mais importante, dominado por ele. Hoje muitos já dominam a tecnologia que este ano, acredito, vai proporcionar um salto de qualidade muito grande. Estou convicto de que a soja veio para ficar, não é mais uma aventura. Temos registros do Irga na revista Lavoura Arrozeira, de 1962, que já apontavam a soja em terras planas como a parceria perfeita com o arroz. Há 52 anos já se falava nisso, e nós retomamos. Em um futuro muito próximo, dentro de 10 ou 15 anos, estou certo de que haverá um grande desenvolvimento da Metade Sul. A última fronteira agrícola do RS vai ser ocupada.
Planeta Arroz – Em relação às exportações, o senhor observa um aumento da demanda pelo arroz brasileiro no mercado externo?
Cláudio Pereira – Sim. O nosso grande diferencial é a qualidade. O arroz brasileiro agulhinha, mais soltinho, cai muito bem no gosto dos europeus. Temos ampliado nosso mercado principalmente para América Central, Caribe, América do Sul e África Ocidental. Através do programa Brazilian Rice, o arroz brasileiro está presente em diversas feiras mundiais e isso tem contribuído para que mais pessoas conheçam o nosso produto. Com as obras de modernização no Porto de Rio Grande e a instalação do ship loader vamos poder embarcar arroz ensacado, com maior valor agregado, para alguns mercados africanos e para Oriente Médio.
Planeta Arroz – O que muda no Irga a partir do concurso realizado no ano passado?
Cláudio Pereira – Esta é uma questão importante, pois contempla o futuro do Irga. O futuro de uma empresa são seus recursos humanos, ou seja, as pessoas que pensam, elaboram e executam o trabalho. Precisávamos trazer uma certa perenidade ao Irga, vaciná-lo com relação às questões políticas. Tínhamos que ter funcionários de carreira para que pudéssemos investir na carreira deles, estimulá-los para que eles pudessem investir também, para que ficassem bastante tempo no Irga, estudando, trabalhando, pesquisando. Já estamos levando pesquisadores para várias partes do mundo a fim de olhar o que está acontecendo, queremos trazer muitas experiências, desenvolver muitas experiências novas no Irga. Já nomeamos mais de 60 agrônomos, além de técnicos agrícolas, e isso é importante porque temos agora um quadro novo de pesquisadores com mestrado e doutorado sem nenhum custo a mais para o Irga. Isso é importante porque vai dar perenidade ao instituto. Na condição de funcionários estáveis eles passam a ser funcionários do Estado e não mais do governo. Quando muda o governo, sendo este funcionário concursado, não há troca, ele vai continuar o seu trabalho.
Planeta Arroz – Embora a direção do Irga mantenha sua orientação política?
Cláudio Pereira – Exatamente, mas a pesquisa científica, o trabalho técnico e a extensão rural terão prosseguimento. A conquista do concurso público e do plano de carreira dos funcionários foi uma contribuição enorme do Governo Tarso para darmos perenidade e segurança para a lavoura de arroz. É a garantia para que o Irga vá para outros 74 anos e continue a funcionar para a lavoura de arroz e não para o governo. O governo que entra terá pouca margem de manobra aqui dentro. Ele vai nomear o novo presidente e os três diretores, que terão de responder para o governo e para o conselho. O conselho continua com suas atribuições delegadas e intransferíveis, que nós não mudamos, de aprovação de comissões, questões patrimoniais, financeiras e orçamentárias, mas os funcionários que aqui estão são de carreira, não vão mudar os pesquisadores. Prevalece o critério técnico.
Planeta Arroz – Qual será o futuro do Irga a partir do fim de sua gestão?
Cláudio Pereira – Eu acho que o Irga, em primeiro lugar, vai ser um instituto muito mais do produtor, do cara que está na lavoura, do que só do arroz. Quando pensamos na soja, no milho, na integração lavoura e pecuária, percebemos que o Irga está muito mais para um instituto do produtor do que só da lavoura de arroz. A outra questão, em termos de arroz, penso que o Irga será, cada vez mais, muito mais criativo em outros pontos técnicos do que só desenvolver variedades. Ele vai dar soluções à lavoura. Vou dar um exemplo: hoje temos um problema de caramujo no estado que nunca deram solução técnica para isso. E por quê? Porque não tínhamos. Agora temos condições de pegar um pesquisador para dar a solução técnica que não seja somente a da química, pois para aplicar herbicida e fungicida ninguém precisa do Irga. A empresa privada faz isso. O Irga precisa dar outras soluções para os produtores: que diminuam os impactos ambientais e a dependência de insumos internos e que melhorem a produtividade e o lucro do produtor. O produtor quer renda, mas também quer preservar a natureza, a terra e a água porque estes recursos não são dele, mas de seus filhos e netos, e ele não quer que cobrem a conta dele no futuro. Ele quer produzir mais e melhor e receber mais por saco de arroz, soja ou milho. Penso que o Irga, cada vez mais, será um centro de excelência e uma referência muito grande, maior inclusive do que é hoje. Está entre os cinco melhores institutos de pesquisas do mundo. Mas temos condições de ir muito mais além. Há questões de biotecnologia, de agroecologia, enfim, um campo muito grande a ser trabalhado para o arroz, pois o Irga, no fundo, não trabalha só para a Metade Sul do RS. Hoje, por exemplo, a cultivar Irga 424 é a principal variedade da América Latina, fruto de uma pesquisa que saiu lá de Santa Vitória do Palmar. É a variedade da América Latina que mais produz: em qualquer país que tu coloques ela vai ser a mais produtiva de todas.
Planeta Arroz – Que avaliação o senhor faz de sua gestão e quais são seus planos pós-Irga?
Cláudio Pereira – Hoje estou aqui como um agente político escalado pelo governador. Eu era prefeito de Santa Vitória do Palmar e o governador Tarso Genro me pediu para renunciar o mandato e assumir o Irga. Vim cumprir este papel até o dia 31 de dezembro, quando encerra meu ciclo no instituto. A partir daí eu estou à disposição do meu partido. Ao longo de minha gestão, o conselho deliberativo do Irga sempre me apoiou, me deu caminho, amizade e segurança política para que eu pudesse construir junto com o governo as soluções para o Irga. E se tem uma coisa que os produtores gostam, é do Irga. Eles não se sentem donos, se sentem parte do Irga. Isso que é importante. Mais uma vez, eu tenho a convicção que o Irga é uma instituição perene. Ao contrário de outras instituições, como a Cesa, a Fepag e a Emater, que apresentavam problemas seríssimos em governos anteriores, o Irga se mantém muito vivo por conta de ter um conselho deliberativo muito forte e com financiamento próprio. Quando as pessoas discutem a taxa CDO, por exemplo, eu digo: “Não abro mão disso”. Não mexam nisso porque isso é o que deixa o Irga vivo.