Terras baixas, altas produções
Programa Duas Safras desafia a metade sul a dobrar produção
Com a meta de ampliar em 40% a produção agropecuária gaúcha, o que significaria um impacto no PIB estadual em torno de 7%, ou R$ 31,9 bi, Farsul, Senar-RS, Embrapa, Abpa, Fecoagro/RS, Asgav e Federarroz lançaram o Programa Duas Safras. O ato ocorreu na quarta-feira (20/4), no Galpão Crioulo do Palácio Piratini, com a presença do governador gaúcho Ranolfo Vieira Júnior, secretários de Estado, parlamentares e lideranças do agronegócio.
As terras baixas, historicamente destinadas à produção de arroz, têm especial relevância no projeto, que acabou casando com o novo momento da orizicultura, focado na diluição de custos e diversificação de culturas em todas as seis regiões rizícolas. “A metade sul, exatamente a região de produção do arroz, é, atualmente, a grande fronteira agrícola do Brasil”, reconhece Francisco Schardong, presidente da Comissão do Arroz da Farsul.
“Nos últimos anos, mais de um milhão e meio de hectares de soja foram implantados com a intensificação da pecuária, e 450 mil hectares são de soja e milho nas várzeas. Uma vez organizado este avanço, o potencial é gigantesco. Temos, pelo menos, três milhões de hectares de terras baixas agricultáveis na metade sul. Nem todas dá pra agregar soja, milho, sorgo ou culturas de inverno, mas uma boa parte oferece essa oportunidade. O arrozeiro tem papel central nesta nova espécie de revolução verde nos pampas”, acrescenta Schardong.
Atualmente, a produção gaúcha da safra de inverno representa apenas 9% do tamanho da temporada de verão, e a pecuária apresenta desempenho inferior em relação à média brasileira. Entre 1990 e 2019, o rebanho bovino teve queda de 0,5% ao ano, enquanto cresceu no país 1,3% a.a. Os abates aumentaram 0,9% a.a. e, no país, 3,1%a.a. Rondônia, por exemplo, teve aumento médio de 7,6%a.a. do rebanho e 14,1% nos abates nesse período.
Nos suínos, o Rio Grande do Sul viu o rebanho crescer, em média, 1,4% a.a., enquanto o Paraná registrou 2,3% e Santa Catarina, 2,9% a.a. Em aves, crescemos 2,36% a.a. em número de animais, mas no centro-oeste, Goiás avança 6,8% e Mato Grosso, 7,5% a.a. A oferta de milho nessas regiões favoreceu a produção e o abate. Enquanto o RS cresceu 2,9%, em média, Mato Grosso registrou 7,4% e Goiás 12,2% a.a. Esse cenário está interligado à produção agrícola.
Sem vazio invernal
A baixa oferta de milho no Rio Grande do Sul limita a ampliação de rebanhos e, com isso, os abates. Ao mesmo tempo, o estado possui área ociosa no inverno que pode ser dirigida a culturas de frio, possibilitando aumentar a produção nas “duas safras”.
O presidente do Sistema Farsul, Gedeão Pereira, foi procurado pelo ex-ministro Francisco Turra, da Associação Brasileira de Proteína Animal (Abpa), que mostrou-se preocupado com a pequena oferta de milho para ração animal, que obriga a importação do grão, aumentando custos e gerando perdas na renda do setor.
Então, a Embrapa, que realiza pesquisas para substituir o milho na alimentação animal, em especial suínos e aves, foi chamada a contribuir.
“Na última década, não crescemos mais por falta do cereal, que, pela logística e demanda do centro-oeste, não virá mais para o sul. Temos que resolver o problema aqui e produzir mais milho, inclusive por irrigação na metade sul”, disse Pereira.
Turra, da Abpa, reforçou a necessidade da mudar esse cenário, e o secretário-executivo da Asgav, José Eduardo dos Santos, declarou: “Antes o setor queria o projeto, hoje, precisa dele”.
Para o diretor da Federarroz, Luiz Carlos Machado, o programa ajudará na diversificação das culturas, especialmente em regiões arrozeiras, aumentando as opções de investimentos.
Reforçou o fato de haver ganhos a todos os envolvidos. Ele enfatizou que a orizicultura vive momento de transição, evoluindo tecnologicamente no sentido de agregar outros cultivos em seu ambiente e poderá contribuir decisivamente para o programa.
O presidente da Fecoagro/RS, Paulo Pires, lembrou que por muito tempo a cultura do trigo não apresentava liquidez. “A demanda da proteína animal trouxe outro viés ao mercado. Hoje, temos liquidez e ela nos remete a uma oportunidade extraordinária”, comemorou.
De olho no fator econômico
O economista-chefe do Sistema Farsul, Antônio da Luz, apontou os principais impactos do programa Duas Safras na economia do Rio Grande do Sul e lembrou que a atual produção de inverno é insignificante e as oportunidades inúmeras. “Precisamos manter e promover nossa produção de proteína animal. O mundo não pode viver sem a agricultura brasileira. O cenário é favorável”, diz, ao apontar o crescimento nas importações mundiais de trigo nos últimos anos.
Ele também enfatiza que o arroz é cultura tradicional das terras baixas, e foi única por muito tempo. Mas lembrou que se não fosse o ingresso da soja no sistema de produção, na última década, a situação agronômica e econômica seria mais grave para os arrozeiros. O arroz é dos raros produtos que valorizou, mas, depois, perdeu preço na pandemia. “É conjuntural. O consumo está em queda no país e a produtividade não para de subir, até porque o produtor precisa de escala para diluir custos e obter renda. A área estagnou em 950 mil hectares”, ilustra.
Para Antônio da Luz, cada vez mais a redução da área plantada aparece como solução para que o mercado comporte a escalada produtiva do arroz, a menos que se abra grande mercados de exportação, o que não é fácil. “Fácil é dizer para o agricultor produzir menos, mas é preciso estar na pele dele para entender a dificuldade de tomar uma decisão como esta. O caminho que resta é apresentar alternativas viáveis agronômica e economicamente”, aponta.
O economista recorda que há uma década as entidades setoriais e instituições de pesquisa, até por necessidade, propuseram e difundiram a soja como alternativa às áreas de arroz. Os primeiros momentos foram difíceis, de muitas dúvidas. “Na soja, passamos de 25 mil hectares para 400 mil em terras baixas. E na área de arroz, de 1,125 mil ha para 950 mil ha graças à soja. Isso trouxe para o arroz, além das vantagens agronômicas e ambientais, certo controle da oferta e garantiu algum equilíbrio no mercado, diluiu custos e preços melhores do que se a área tivesse se mantido nos patamares de há seis, sete anos”, enfatiza.
Desafio da inserção
Hoje, Antônio da Luz avalia que o desafio é avançar na produção de soja, mas inserir o milho no sistema. “Assim, o produtor que tinha uma alternativa de cultivo e comercialização passa a ter portfólio de três produtos, alternativas capazes de reduzir o risco econômico, melhora o fluxo de caixa e pode incluir a pecuária e cultivos de pastagens ou grãos de inverno com técnicas consolidadas ou em desenvolvimento nos centros de pesquisas do Brasil e do mundo”, diz o economista da Farsul. Segundo ele, o programa defende, em função dos riscos, o melhor aproveitamento da pecuária em áreas de arroz durante o inverno e culturas como trigo, cevada e triticale nas coxilhas.
Antônio da Luz destaca que o mundo do milho mudou. “Sete anos atrás, a China importava três milhões de toneladas, hoje, são 26 milhões, um fenômeno similar ao que ocorreu na soja. Os elementos do salto na demanda pela China – e o resto do mundo – se repetem no milho. A indústria gaúcha tem forte demanda pelo grão, mas se em algum momento não tiver, o mundo inteiro estará comprando. Precisamos estar atentos e aproveitar a oportunidade”, explica.
Fique de olho
Estudo do Departamento de Economia da Farsul fez um comparativo entre milho e arroz. Partindo do princípio que vis à vis, a produtividade de milho e arroz bem conduzidos equivalem-se em número de sacas por hectare. O preço do milho em março representava 20% a mais do que o produto rizícola, e o custo de produção deste era 26% maior, a diferença da margem de rentabilidade em favor do milho chega a 355%. É uma margem que permite arriscar.
Portfólio de tecnologias
O Programa Duas Safras potencializará a transferência de tecnologias geradas pela pesquisa nacional com foco nas condições de clima temperado do Rio Grande do Sul, conforme avaliação do chefe-geral da Embrapa Clima Temperado, Roberto Pedroso de Oliveira. “No programa, espera-se difundir ainda mais a tecnologia sulco-camalhão para centenas de milhares de hectares de terras baixas, ampliando a produção de soja e, em especial, de milho”, afirma.
A unidade integra o programa em três linhas de estudo: cultivo de cereais de inverno em terras baixas com avaliação de manejo de animais sob pastoreio de forma alternada; avaliação do desempenho de trigo e o triticale em sistema sulco-camalhão; e avaliação de triticale, trigo, aveia e azevém com o uso da tecnologia de camalhões de base larga. André Andres, gestor da Estação Experimental do Arroz em Terras Baixas da Embrapa Clima Temperado, considera que há meios consolidados e outros em desenvolvimento capazes de dar suporte tecnológico à nova realidade, em especial nesses cultivos, na metade sul gaúcha.
Além da difusão do sulco-camalhão, que pode alcançar 50 mil hectares da lavouras no próximo verão por e apresenta soluções para irrigação e drenagem de culturas do seco em terras baixas, a Embrapa Clima Temperado avalia cereais de inverno, forrageiros ou não, em ambientes de cultivos convencionais em várzeas sobre restava de arroz e soja.
O sulco-camalhão é uma tecnologia que a Embrapa adaptou dos Estados Unidos para as terras baixas gaúchas e pode agregar três milhões de hectares, os quais podem ser intensificados através de tecnologias que tanto são eficientes na irrigação quanto na drenagem, o maior desafio de cultivos de sequeiro em ambientes de várzeas. Nesse sistema, em alguns experimentos, a produtividade do milho irrigado por sulcos beirou 200 sacas por hectare.
“Para soja e milho, temos ótimos resultados no verão. O milho, por exemplo, manteve rendimentos superiores a 10 toneladas em todas as unidades, tanto em sulco quanto em sistema tradicional com envaletamento. O controle eficiente de plantas daninhas resistentes a herbicidas da cultura do arroz e ausência de doenças foram ganhos extras”, enfatiza o pesquisador André Andres.
Os experimentos de inverno, em 2021, comportaram-se muito bem, com produtividades muito boas para trigo, triticale, centeio e cevada. No caso da triticale, que alcançou teto acima de 60 sacas por hectare, também há estudos de dimensionamento do uso de nitrogênio.
Questão básica
Unidades demonstrativas foram instaladas em algumas propriedades da fronteira oeste, campanha e, em especial, zona sul para analisar o comportamento dos cereais de inverno em terras baixas. Avaliar uso dos grãos na composição de rações fica por conta da Embrapa Aves e Suínos, de Concórdia (SC). Há trabalhos com trigo em Jaguarão e unidades experimentais com cereais de inverno em propriedades privadas, como a Fazenda São Francisco (Quero-Quero), Granja Quatro Irmãos e Lagoa Mirim (em avaliação), em Arroio Grande, Santa Vitória do Palmar e Rio Grande. Em São Borja, consultorias privadas atendem área de cinco mil hectares de trigo em terras baixas.
Arroz volta mais forte
Uma das grandes vantagens comparativas da aplicação de tecnologias para a produção de grãos de sequeiro em rotação com o arroz em terras baixas é o retorno que isso dá ao próprio arroz. André Andres, pesquisador e gestor da Estação Experimental de Terras Baixas da Embrapa Clima Temperado, enfatiza que, nesta safra de verão, o Rio Grande do Sul plantou cerca de 1,3 milhão de hectare de arroz, soja e milho em terras baixas. “Imagine se o estado continuasse, com as produtividades atuais, cultivando apenas arroz nestas áreas, o tamanho do problema de comercialização que causaria”, questiona.
Mas, como há um sistema bem montado de irrigação e evolução na drenagem, o avanço da tecnologia de cultivos permitirá, segundo Andres, que o estado continue evoluindo em produtividade e qualidade de grãos sem, contudo, gerar uma superoferta e todas as consequências que isso traz, no caso do arroz. “Se o produtor perceber que precisa reduzir a área, tem alternativas que não existiam 10, 15 anos atrás. Não serão abertas novas áreas, mas haverá um aproveitamento eficiente daquelas que estão produzindo arroz sem gerar renda”, enfatiza.
Para André Andres, ao associar as duas culturas – milho e soja – em rotação com arroz, e talvez pecuária e outros cereais no inverno, a lavoura de arroz sairá ganhando. “Quando o agricultor voltar com arroz, terá um solo mais equilibrado, fértil, melhor controle de invasoras e com maior potencial de produtividade, uma vez que este sistema tem traduzido elevação de rendimentos entre 1 e 1,5 toneladas por hectare, mesmo no sistema pingue-pongue (arroz-soja-arroz). E isso tende a resultar em renda”, finalizou.
Integração com pecuária
Nas outras áreas, um pouco maiores, os experimentos foram adotados sobre resteva de arroz, parte com forragens para pastagem e lotação de pecuária. “Ficamos satisfeitos com o desempenho, seja pelo desenvolvimento das plantas, seja pelo ganho de peso dos animais. Mas vamos fazer um segundo ciclo neste inverno, em áreas maiores, e estamos otimistas de que serão novas opções de renda e produção de alimentos e matéria-prima para rações produzidas na zona arrozeira”, observa o pesquisador.
A otimização do manejo do azevém e trevos, buscando uma pecuária mais intensiva sobre esse piso, é outro desafio nos experimentos da Embrapa. Nos cereais de inverno há o suporte da Embrapa Trigo, de Passo Fundo, já nas avaliações de forrageiras, o apoio é da Embrapa Pecuária Sul, de Bagé. Nesse aspecto, busca-se manter o máximo de tempo de disponibilidade de pasto nos campos entre as safras de grãos. A Embrapa também analisa o resultado da produção de pré-secado de cereais de inverno para silagem e alimentação de gado leiteiro.