Começar de novo

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Crateras: foi o que restou onde havia uma lavoura

A Região Central busca reconstrução após tragédia climática

A partir de 28 de abril de 2024, a Região Central do Rio Grande do Sul viu desaparecer grande parte de seus mais de 100 mil hectares de lavouras de arroz, engolidas pelas enchentes que assolaram todo o estado na pior tragédia climática de sua história. Na região, 23 municípios foram diretamente atingidos, em uma área semeada de 118.107 hectares — o equivalente a 13,1% da área cultivada no Rio Grande do Sul.

Dos 2.626 produtores da região — que representam quase 40% do total do Rio Grande do Sul —, 1.914 orizicultores foram diretamente afetados pelos danos das enchentes, abrangendo 1.819 unidades produtivas. Isso equivale a quase 30% dos produtores do estado, em uma área total de 41.474 hectares, ou 4,6% da área estadual. Outros 5.575 hectares sofreram acúmulo de areia e pedras, com uma deposição estimada de 29 milhões de metros cúbicos de material — o equivalente a 2,9 milhões de cargas de caçamba.

Levantamento do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga) demonstrou que 1.085 hectares sofreram remoção de até 25 centímetros da camada superficial do solo, enquanto 155 hectares apresentaram erosão entre 1,5 e 5,5 metros — o equivalente a 470 mil cargas de caçamba de terra. O assoreamento causado pelo acúmulo de sedimentos nos leitos dos rios somou, apenas na região, 614,5 quilômetros. As perdas ainda estão sendo mensuradas, mas, somente em máquinas, equipamentos, construções e grãos armazenados em silos atingidos pelas enchentes, os prejuízos já somam cerca de R$ 200 milhões. Ainda assim, em algumas áreas, foi possível colher arroz em 2025.

“Além das perdas que alcançaram 36% da área semeada em 2023/24, uma vez que estávamos na reta final da colheita, as águas lavaram e romperam o solo, danificaram estruturas, máquinas, casas, silos e tivemos como prejuízo importante um atraso muito superior ao normal na semeadura da safra 2024/25”, explicou o engenheiro agrônomo José Mário Tagliapietra, da Cooperativa Mista Nova Palma Ltda. (Camnpal), de Dona Francisca.

Tão logo diagnosticadas as perdas, cujos prejuízos ainda não foram dimensionados em valores, foi hora de buscar soluções. Uma força-tarefa reuniu técnicos das empresas públicas e privadas da região, produtores, universidades e entidades setoriais, além da Prefeituras, para mapear os danos e realizar estudos e acompanhamento das áreas degradadas.

RESILIÊNCIA
O que mais chamou a atenção, segundo José Mário Tagliapietra, foi a resiliência dos produtores. “Raros foram os que falaram em desistir. Em geral, o que vimos foi uma determinação sobre-humana de querer reconstruir”, enfatizou o agrônomo da Camnpal. A força da agricultura do Rio Grande do Sul tem se revelado mais uma vez diante da adversidade. Após as enchentes que devastaram a Região Central do estado entre 29 de abril e 30 de maio de 2024, produtores rurais de Dona Francisca, especialmente nas localidades de Linha Grande e Linha dos Ropke, uniram-se para reconstruir suas terras e, ao mesmo tempo, manter a colheita em andamento.

A cheia do Rio Jacuí provocou a abertura de crateras de até oito metros de profundidade em um trecho de aproximadamente 1,5 km na área conhecida como Retorcida, destruindo lavouras, silos, bombas de irrigação, estradas, pontos de captação de água e residências. “Foi um desastre completo. Produtores perderam não só o arroz que estava nos silos, mas os próprios silos, casas e acessos. Muitos tiveram perdas totais”, relatou o engenheiro agrônomo José Mário Tagliapietra.

União para reconstrução

Ajuda de Uruguaiana: óleo diesel foi essencial para os agricultores atingidos

Diante da calamidade, um grupo de 26 produtores reuniu-se para encontrar soluções. No dia 16 de setembro de 2024, 18 deles se encontraram na propriedade de Leonir Marzari para estruturar uma força-tarefa de recuperação das margens do rio. Ficou definido que todos contribuiriam com horas de máquina para conter a erosão e restaurar as áreas produtivas.

A ação foi apenas uma das muitas ocorridas na região e contou com o apoio da cooperativa Camnpal, da Secretaria Municipal de Agricultura e Turismo de Dona Francisca e da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz), além da solidariedade de produtores de Uruguaiana, que doaram recursos financeiros e combustível. “Foram destinados 25 mil litros de óleo diesel às comunidades mais afetadas e, posteriormente, outros 12 mil litros a localidades vizinhas”, disse José Mário Tagliapietra.

A mobilização foi coordenada por lideranças, como Ariosto de Macedo Pons Neto, presidente da Associação dos Arrozeiros de Uruguaiana e Barra do Quaraí, Roberto Ghigino Fagundes, vice-presidente da Federarroz, e Anderson Belloli, do setor jurídico da entidade. Mesmo diante da tragédia, muitos agricultores tiraram dinheiro do próprio bolso para retomar as atividades. “Alguns investiram de R$ 10 mil a R$ 100 mil para recuperar suas terras. Isso mostra a resiliência do produtor, que conhece a terra e não abandona sua vocação”, reforçou Tagliapietra.

Colheita em andamento: arroz e soja surpreendem

Apesar dos atrasos causados pelos alagamentos e pela semeadura fora do período ideal, a colheita de arroz na região da Quarta Colônia avançou. A Cooperativa Mista Nova Palma Ltda. (Camnpal) recebeu, até o fim de março, mais de 770 mil sacas de arroz, com picos diários de 22,5 mil sacas e cerca de 90 pesagens por dia.

“A qualidade do grão colhido se manteve dentro dos padrões esperados, com 56% a 57% de grãos inteiros. Embora as altas temperaturas no início da colheita tenham afetado parcialmente a integridade do arroz, a produtividade média deverá atingir 9.000 kg/ha em municípios como Dona Francisca”, resumiu José Mário Tagliapietra. . Outro destaque é a diversidade genética, com 18 cultivares diferentes identificadas nas lavouras. Até a primeira quinzena de maio, 85% da área plantada já foi colhida.

A colheita da soja também chegou em maio praticamente concluída. A cooperativa já recebeu 3,276 milhões de sacas até o início do mês, restando apenas cerca de 3% da produção em campo. O clima favorável e a assistência técnica das cooperativas foram fundamentais para o bom desempenho das safras.

A superação dos desafios enfrentados pelos produtores da região é, segundo as lideranças locais, um exemplo de solidariedade e perseverança. “Mesmo com as marcas profundas que as enchentes deixaram no solo e nas famílias, seguimos em frente. O produtor é resiliente, sabe como trabalhar com a terra. Unidos, vamos reconstruir e continuar produzindo com dignidade”, concluiu a coordenação da força-tarefa.

Perdas físicas e estruturais, ganhos químicos

Mara Grohs, análise minuciosa para o Irga
Um rio passou dentro da lavoura

De forma geral, a análise das áreas atingidas pelas enchentes de maio de 2024 demonstrou profundos danos na parte física e estrutural dos solos. Porém, na parte química, houve uma melhora em vários parâmetros, provavelmente em função da deposição de sedimentos. A conclusão é da pesquisadora do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), Mara Grohs, que coordena a Estação Regional do Arroz do Irga na Região Central e faz parte do grupo que acompanha o desenvolvimento e a recuperação das áreas atingidas pela catástrofe.

“Acredita-se que isso seja passageiro, visto que os solos perderam qualidade biológica, principalmente em relação à quantidade de matéria orgânica, sendo que muitos se aproximaram de zero com a deposição da areia. Isso também causou redução de microbiota, mas aumentou a diversidade de microrganismos, inclusive maléficos às plantas”, acrescentou a pesquisadora.

Segundo Mara Grohs, também houve maior incidência de algumas plantas daninhas, como o arroz-vermelho, em determinadas áreas de produção, além do aumento de nematoides. Em função da necessidade de readequação das áreas, a época de semeadura foi extremamente comprometida, sendo que a maior parte das lavouras foi semeada no mês de dezembro. Sabe-se que há uma redução de produtividade estimada em 75 kg/ha/dia para semeaduras realizadas após 15 de outubro. Ou seja, o produtor sofreu prejuízos tanto em relação ao solo quanto à produtividade.

“Os resultados até agora obtidos revelam que há intervenções adicionais no manejo do produtor que podem ser necessárias, porém, é variável em função do tipo e nível de dano. Há a necessidade de mais anos de estudo para inferir recomendações mais precisas”, concluiu.

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