“Passado o diagnóstico, é preciso agir”

 “Passado o diagnóstico, é preciso agir”

Enio Marchesan, aos 71 anos, está concluindo 47 anos de docência na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), aposentando-se e partindo para atuar em consultoria agronômica. É uma das grandes referências em manejo do solo e das culturas em terras baixas do Brasil. Graduado em Agronomia, é doutor em Fitotecnia, pela Esalq, e pós-doutor em Ciências Agrárias pela Texas A & M University, dos EUA. Profundo conhecedor da realidade da Região Central gaúcha, foi um dos promotores do Simpósio sobre o Impacto das Enchentes nas Terras Baixas e nos apresenta conclusões e opiniões sobre os fatos relevantes e impactos da tragédia climática sobre os cultivos arrozeiros e associados a essa cultura.

Planeta Arroz – Qual foi o maior problema da safra 2023/24 nas terras baixas?
Enio Marchesan – “O ponto fundamental foi, sem dúvida, as enchentes ocorridas a partir de fim de abril e início de maio. Este evento extremo se apresentou com precipitações muito acima da média nesse período e na maior parte dos dias do mês de maio, com efeito negativo se expressando nas colheitas de arroz e soja. Outro ponto importante é que essas perdas já começaram com o excesso de chuvas no período preferencial de semeadura, na primavera, a partir de setembro de 2023”.

Planeta Arroz – Quais os impactos sobre a produção?
Enio Marchesan – “O primeiro impacto foi o atraso da semeadura do arroz e da soja, que repercutiu na colheita, fase que coincidiu com a chuvarada de abril/maio, provocando maiores perdas, em especial, na Região Central. Arrozeiros que conseguiram implantar a lavoura entre as ‘janelas’ nas cheias de setembro e novembro foram menos afetados, pois colheram antes das inundações. Aqui aparece a importância do sistema de drenagem das áreas, da gestão da propriedade, da localização e da topografia da área e da soja no sistema de produção, entre outros aspectos, pois áreas cultivadas com soja na safra anterior estão entre as primeiras semeadas com arroz”.

Planeta Arroz – O atraso foi determinante para as perdas…
Enio Marchesan – “Quem plantou no mês de dezembro, não conseguiu colher parte ou até a totalidade. No caso da soja, muitas perdas ocorreram porque, semeada após as lavouras de arroz, a colheita coincidiu com a ocorrência de chuvas intensas ou frequentes, que impediram as operações ou fizeram com que o grão colhido apresentasse qualidade baixa”.

“A colheita coincidiu com o período de chuvas intensas”

Planeta Arroz – Por quais motivos a Região Central foi a mais atingida?
Enio Marchesan – “Além do fenômeno de intensas chuvas ter se concentrado sobre o centro do Rio Grande do Sul, esta é a região de maior atraso na época de semeadura do arroz por dois motivos principais: a dificuldade em cultivar soja nessas terras baixas (a semeadura do arroz pode ser realizada antes) e o cultivo de arroz sobre arroz, sem rotação, normalmente é semeado mais tarde para dar oportunidade de emergência ao arroz vermelho ou cultivado oriundo das perdas de colheita, que serão eliminados em duas ou três camadas antes de semear a nova safra. Isso possibilita reduzir o banco de sementes”.

Planeta Arroz – Como as inundações e enxurradas afetaram a Quarta Colônia?
Enio Marchesan – “Em primeiro lugar, na infraestrutura. Fora da propriedade, é preciso recuperar a mobilidade através das estradas e pontes que foram destruídas. Dentro da propriedade, recuperar as moradias, galpões, consertar máquinas, levantes de água, redes de energia elétrica e estradas internas”.

Planeta Arroz – E o segundo ponto?
Enio Marchesan – “É a necessidade de recursos financeiros para realizar a próxima safra. Mas, antes,é preciso ainda resolver problemas dos compromissos da safra passada, atingida pelas cheias. Os recursos gastos no dia a dia da propriedade, na recuperação das áreas e estruturas, são os mesmos que podem faltar para insumo na safra que se aproxima. Então, para esses produtores, a realização do próximo cultivo passa pela renegociação dos compromissos financeiros pendentes”.

Planeta Arroz – E depois?
Enio Marchesan – “Um terceiro dano causado está relacionado aos cursos d’água. Há necessidade de intervenção no leito do rio, que está em partes obstruído ou assoreado, e de recuperação de partes das margens dos rios. A preocupação é com as próximas chuvas, que, em volumes bem menores, podem provocar extravasamentos dos rios e novos danos às áreas em recuperação. Recompor a mata ciliar também demanda recursos e tempo para projeto e consolidação da vegetação. Tais questões envolvem grande volume de recursos financeiros e técnicos especializados para proporcionarem a segurança e a sustentabilidade desejadas”.

“São necessárias máquinas que o agricultor não dispõe”

Planeta Arroz – Por fim…
Enio Marchesan – “Um dos prejuízos mais importantes na unidade de produção é dentro da lavoura, no solo, o maior patrimônio do agricultor, que é a base de todo o sistema de produção. Em determinadas áreas da lavoura ocorreu a perda da camada fértil estruturada do solo, noutras áreas houve acúmulo de areia, pedras, abertura de crateras ou canais de passagem da água onde o solo também foi levado embora. Os sistemas de drenagem e de irrigação foram afetados pela obstrução de canais e drenos. É necessário repensar e reorganizar esses sistemas, em cada situação afetada. A preocupação é de onde virão os recursos e quanto tempo será necessário à recuperação”.

Planeta Arroz- Como o produtor vem reagindo a esses danos?
Enio Marchesan – “Passado o impacto inicial, começam a recuperar o que é possível dentro das suas possibilidades de recursos financeiros, de máquinas e de clima. Para algumas atividades são exigidas máquinas as quais o agricultor não dispõe. Assim é necessário contratar serviços de terceiros. Comunidades mais organizadas conseguem parte dos recursos e aproveitam oportunidades que a condição climática permite antes de iniciar a semeadura da nova safra”.

Planeta Arroz- Como a pesquisa pode ajudar?
Enio Marchesan – “A identificação e quantificação dos danos é uma primeira fase muito importante do processo. A metodologia bem pensada, visando identificar claramente as demandas dos locais afetados, foi uma fase muito importante para desencadear ações mais assertivas na busca de recursos financeiros, para atrair expertises profissionais e sensibilizar autoridades e órgãos de financiamento”.

Planeta Arroz – E a aproximação com os diversos segmentos também?
Enio Marchesan – A realização de simpósios com a participação de diferentes extratos da comunidade envolvida, produtores, técnicos, pesquisadores, órgãos ambientais, imprensa, é muito importante para dividir com a comunidade envolvida o que já está sendo feito e as necessidades de avanço tanto em termos de pesquisa como de investimentos. Como estas são situações novas, tanto de perda de solo como de acúmulo de areia, torna-se importante a realização de ‘protocolos de pesquisa’, que deverão ser testados em campo”.

Planeta Arroz – Desses encontros virão os resultados?
Enio Marchesan – “Acompanhamento, interpretação e discussão dos resultados com os produtores e em diferentes fóruns é uma estratégia importante para encontrar as melhores respostas aos diferentes problemas e situações. Pode ser outra contribuição importante da pesquisa, associando-se ao serviço de extensão. Trabalhos acadêmicos podem ter respostas mais demorada, mas são muito importantes para tentar explicar os fenômenos, envolvendo alunos e pesquisadores nesta nova realidade”.

Planeta Arroz – Quais as conclusões do Simpósio sobre Enchentes, organizado pela UFSM e Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga)?
Enio Marchesan – “Foram apresentados resultados do diagnóstico dos impactos causados em diferentes setores, propostas para problemas emergenciais e estruturantes e ressaltada a necessidade de ter as licenças ambientais nas questões que exigem. Passamos a fase de diagnóstico. É preciso agir, buscando recursos e interagindo com os produtores”.

‘Agora, é preciso agir”

Planeta Arroz – Mas há também necessidade de prever melhor esses eventos?
Enio Marchesan – “É preciso ter melhor monitoramento dos eventos climáticos, com aquisição e disponibilização de equipamentos que proporcionem mais precisão nos prognósticos. É situação nova e desconhecida, necessitando-se redes para geração e compartilhamento de informações. O trabalho colaborativo é fundamental. O pagamento por serviços ambientais é proposta que poderá desempenhar papel importante no auxílio aos produtores na recuperação e manutenção dos recursos naturais”.

Planeta Arroz – Quais passos devem ser dados para a retomada nessa região?
Enio Marchesan – “Corrigir as irregularidades do terreno com materiais disponíveis na propriedade, acumulados próximo do local ou retirando de alguma parte mais alta da área, dentro do possível em cada situação. Recuperar o nivelamento da superfície do terreno. Fazer análise do solo, tentando contemplar diferentes movimentações na área e no perfil do solo. Isso vai determinar as intervenções necessárias e possíveis de serem implementadas”.

Planeta Arroz – Mas há outros pontos…
Enio Marchesan – “Sim. É importante a reestruturação ou reestabelecimento do sistema de macro e microdrenagem e de irrigação da área; manter sempre o solo com cultivos que proporcionem volume de raízes e palha no sistema, visando elevar a matéria orgânica; acompanhar a evolução da resposta da planta às práticas de manejo adotadas, objetivando corrigir eventuais desequilíbrios rapidamente e identificar as melhores práticas; promover eventos de troca de experiências entre produtores e técnicos nas diferentes fases do processo de recuperação, elencando os melhores manejos para a próxima safra”.

Planeta Arroz – Como recuperar a produção nos níveis anteriores?
Enio Marchesan – “É um processo continuado de aprendizagem, longo e variável, de acordo com o nível de danos, que se insere dentro de um sistema onde a operação seguinte sempre é cliente da operação anterior. É necessário o envolvimento de profissionais de diferentes áreas no processo de reconstrução. A observação e a medição/quantificação dos resultados de cada intervenção são fundamentais. É preciso mais assistência técnica e estar mais presente na propriedade, para interpretar o que a ‘planta está nos dizendo’”.

Planeta Arroz – Como recuperar a estrutura e o solo?
Enio Marchesan – “Estes três componentes se completam. A recuperação do perfil do solo vai proporcionar maior resiliência ao sistema de produção. É preciso identificar se há limitações da parte física no ambiente radicular e qual intervenção deve ser proposta, prestar atenção não só na quantidade, mas também no equilíbrio da parte química dos nutrientes, desenvolver a parte biológica do solo, criando condições para que os organismos que estão adaptados às condições edafoclimáticas do local se desenvolvam e aplicando organismos recomendados às diferentes situações de recuperação do solo.”

“Precisamos estar preparados para as piores situações”

Planeta Arroz – Que lições a catástrofe climática deixou?
Enio Marchesan – “É preciso estar preparado para as piores situações, tanto de eventos climáticos de enchentes como de secas. Devemos buscar sistemas de produção cada vez mais resilientes, tanto por parte da planta, do solo e da propriedade como um todo. É necessário auxiliar o produtor a viabilizar a preservação dos recursos naturais, não apenas na parte técnica na propriedade, mas também através de projetos estruturantes que garantam recursos financeiros aos produtores que ajudem na preservação”.

Planeta Arroz – Seria o caso de desenvolver um projeto focado no controle sobre as águas?
Enio Marchesan – “Exatamente. É importante desenvolver um projeto para as terras baixas do RS que proporcione mais controle sobre o fluxo das águas, contemplando drenagem, irrigação e reservação de águas. Isso vai proporcionar mais resiliência para cultivos como soja, milho, plantas de cobertura e de inverno em sistemas intensivos e sustentáveis de produção, tendo o arroz como atividade principal neste ambiente. É preciso desenvolver e fortalecer lideranças regionais que possam representar os sistemas produtivos agropecuários em todos os fóruns relacionados”.

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