Carga pesada
Alíquota diferenciada do ICMS acirra a guerra tributária
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A competitividade da orizicultura gaúcha passa, obrigatoriamente, pela desoneração tributária. Um comparativo dos tributos estaduais incidentes sobre o arroz indica que as variações nas alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) podem chegar a 12% entre os estados, o que é uma distorção muito grave para o mercado nacional.
O tema é controverso e esbarra num jogo de interesses dos estados de grande produção, onde o governo federal não aceita abrir mão de suas receitas, e dos estados importadores, que buscam incentivar a instalação de indústrias e a produção interna. Mas há um consenso: a carga tributária sobre o arroz, bem como sobre outros itens da cesta básica brasileira, é muito alta e deveria ser reduzida ou equalizada.
As diferentes alíquotas sobre o arroz em diversos estados brasileiros estão tirando a competitividade do Rio Grande do Sul, acirrando a guerra fiscal e agravando a crise vivida pelo setor, hoje pressionado por preços muito abaixo dos custos de produção, câmbio desfavorável para exportação e pelo ingresso do produto importado de países do Mercosul. O analista Tiago Sarmento Barata defende a redução de impostos.
Ao todo, são 27 legislações de ICMS que abrangem os 26 estados da federação e o Distrito Federal. No Rio Grande do Sul, estado que responde por mais de 65% da produção nacional de arroz, a alíquota do ICMS é de 12%, enquanto outras unidades da federação oferecem isenção ou trabalham com taxa de 7% de imposto sobre o grão para atrair indústrias que beneficiem o produto em seus territórios. É o caso de São Paulo, que tem alíquota de 7% (mas o governo paulista já manifestou a intenção de isentar), e de Minas Gerais, que zerou a alíquota sobre o arroz em 2005.
Com base nesse cenário, o presidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz), Renato Rocha, juntamente com outras lideranças gaúchas ligadas ao setor produtivo, encaminhou ao governo estadual um pleito reivindicando o mesmo tratamento para o estado. Como medida emergencial, as indústrias gaúchas também defendem a queda da alíquota do ICMS do arroz temporariamente para zero, para melhorar o preço do grão.
NECESSIDADE
O presidente do Sindicato das Indústrias de Arroz do RS (Sindarroz-RS), Elton Doeler, não acredita que o Estado possa abrir mão permanentemente do ICMS na cadeia do arroz, que representa 2,5% do PIB. Mas ele reconhece a necessidade de ações emergenciais que deem resposta ao mercado de uma maneira mais positiva. O impacto desta medida, segundo o dirigente, seria de aproximadamente R$ 200 milhões em seis meses, valor inferior ao que o governo federal precisa investir, por exemplo, nas ferramentas de manutenção do preço mínimo.
Doeler, no entanto, deixa claro que a reforma tributária, ou pelo menos uma reforma do ICMS em âmbito federativo, é item número 1 na pauta da atual direção do Sindarroz-RS. “Esta é a premissa básica para que possamos competir de igual para igual com os outros estados e com os países do Mercosul. A equalização do ICMS acaba com as distorções do mercado nacional, reduz a informalidade acentuada no beneficiamento e comercialização do arroz e a elevada sonegação fiscal decorrente desta situação. A alíquota única elimina a concorrência desleal e predatória às empresas que cumprem, com dificuldade, todas as obrigações legais”, garante.
REFORMA FRAGMENTADA
Para o ex-governador gaúcho Germano Rigotto, hoje consultor na área de tributos (ver entrevista nesta edição), a solução para corrigir a assimetria tributária entre os estados – e colocar um ponto final na guerra fiscal entre eles – passa, necessariamente, pela reforma tributária. A proposta encaminhada por Rigotto permanece engavetada no Congresso, embora o governo tenha chegado a cogitar a hipótese de avançar a reforma “em pedaços”.
Esta hipótese foi confirmada às vésperas do fechamento desta edição, no dia 26 de abril, quando o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa, confirmou a ideia do governo de fazer uma reforma tributária “em paralelo” ou “fatiada”. O primeiro passo dessa reforma fragmentada trata da diminuição do ICMS interestadual para os produtos importados.
Inicialmente, o governo tinha proposto a redução a zero da alíquota do ICMS interestadual. No entanto, após conversa com os estados, a proposta foi reformulada para fazer uma redução gradual da alíquota do ICMS dos atuais 12% para até 2%. A partir do ano que vem, a alíquota passaria de 12% para 8%, em 2013 seria reduzida para 4% e em 2014 passaria para 2%.
Esta é a primeira proposta efetiva da reforma tributária fatiada, prometida pela presidenta Dilma, mas, para Rigotto, ainda não resolve o problema da guerra fiscal e das alíquotas diferenciadas de ICMS que impactam na cadeia do arroz.
EFEITO MERCOSUL
Além da guerra fiscal entre os estados, a assimetria tributária fortalece a importação de arroz dos países vizinhos. Das 70 mil toneladas de arroz beneficiadas por mês em Minas Gerais, pelo menos 40 mil são importadas do Mercosul. O vice-presidente de mercados da Federarroz, Marco Aurélio Tavares, cita como exemplo o estado de Minas Gerais, onde o produto importado do Mercosul chega com ICMS zero. Já o arroz gaúcho paga 12% de tributo.
A entrada do cereal dos países do bloco também pressiona os preços no Brasil. Enquanto o custo de produção por saca é de US$ 15 no Rio Grande do Sul, no Uruguai e na Argentina o total fica próximo de US$ 11. “Com a queda do dólar, a importação se fortalece muito”, observa Tavares.
Com uma carga tributária menor e insumos mais baratos, os países do Mercosul acabam promovendo uma competição desigual com os produtores do Rio Grande do Sul. Mas há ainda outros fatores que encarecem a produção nacional: “O custo Brasil é extremamente alto e os tributos são apenas uma parte disso. Tem os juros, a logística, os portos, os gargalos de infraestrutura e outros custos que encarecem a produção nacional, tiram a competitividade do Brasil e, paralelamente, incentivam a entrada do produto que vem de fora”, avalia Rigotto.
Segundo ele, o Brasil caminha para um processo desindustrialização se algo não for feito rapidamente ou se alguns limites não forem determinados. “Temos que ter a capacidade de construir um sistema tributário semelhante ao dos países concorrentes que estão aqui do nosso lado”, resume o ex-governador.
TEC NACIONAL
O analista de mercado Tiago Sarmento Barata explica que os países do Mercosul, para se protegerem da oferta de arroz produzido fora do bloco, impõem uma taxa de 10% a 12% (Tarifa Externa Comum – TEC). “No Brasil, o tratamento tributário dado ao arroz gaúcho nas transações interestaduais é similar ao dado no Mercosul ao arroz asiático. Como se o Sudeste, região com déficit anual superior a 5 milhões de toneladas, precisasse se proteger da entrada do arroz do Sul”, diz.
Barata também apresenta outro dado interessante que comprova como o Rio Grande do Sul está ficando de fora do jogo, até mesmo como porta de entrada para o produto importado. “Em março de 2011, das 60,6 mil toneladas de arroz importadas, apenas 27,8% entraram pelo RS. Há cinco anos, 80% do cereal importado entrava pelas fronteiras gaúchas”.
A cobrança é forte: as importações dos países vizinhos devem provocar, este ano, um excedente de 2 milhões de toneladas, mas a produção nacional, estimada em 13,4 milhões de toneladas pela Conab, seria suficiente para atender ao consumo, projetado em 12,8 milhões. Para o presidente da Federarroz, Renato Rocha, a situação já passou do limite de urgência, pois a safra foi colhida e o preço da saca em algumas regiões está abaixo de R$ 18,00 livre ao produtor. Já o preço mínimo do governo federal é de R$ 25,80, enquanto o custo de produção é de R$ 29,13.
Por esta razão, o setor produtivo está solicitando ao governo federal a implantação de um novo mecanismo, chamado preço-meta, no qual o governo complementa a diferença entre o valor de mercado e o de referência quando as cotações forem inferiores à garantia, o que faria a renda chegar ao produtor.
Também estão sendo pedidas a suspensão das importações de arroz do Mercosul até a correção das assimetrias entre os países, a suspensão do vencimento, até 31 de outubro de 2011, de todos os financiamentos de custeio, investimentos e comercialização para reescalonamento das dívidas do setor e uma solução para o escoamento de 1,5 milhão de toneladas de arroz excedentes.
Desonerar para alavancar exportações
A desoneração tributária também é uma alternativa para alavancar as exportações brasileiras de arroz. No entanto, o Brasil vem perdendo competitividade no mercado internacional por causa dos impostos elevados, enquanto países como Uruguai, Argentina e Paraguai adotam mecanismos de desoneração.
Outro fator agravante, na análise do presidente da Federarroz, Renato Rocha, é o câmbio desfavorável: “A valorização do real dificulta as exportações, que só acontecem em razão do PEP”, argumenta.
O produtor Walter Arns, de Uruguaiana (RS), compartilha o ponto de vista. Para ele, a carga tributária brasileira e os altos custos de infraestrutura de escoamento da produção são gargalos para exportar. “Quando temos excedentes, o mercado vem abaixo do preço mínimo, e só podemos exportar grandes volumes. O aumento do fluxo de venda externa acontece pelos preços deprimidos”, ressalta.
De acordo com o produtor, é preciso consolidar as exportações em maior volume, mas não através de mecanismos que, segundo ele, são subsídios disfarçados e burocratizados, que permitem distorções.
ALTERNATIVAS
O diretor do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), André Nassar, reconhece que existe demanda externa para o arroz brasileiro, mas o país não consegue competir em termos de preço porque os custos são altos e o câmbio não ajuda. “A gente não pode subsidiar a exportação porque a Organização Mundial de Comércio (OMC) não permite e também porque não é bom negócio pagar para exportar, mas há outras alternativas”, lembra.
A opção ideal, segundo ele, seria adotar o reintegro, ou seja, a devolução presumida de impostos pagos na cadeia de produção, a exemplo do que faz o Uruguai.
Trata-se de uma alíquota aplicada sobre o valor FOB de exportação (no Uruguai é de 2%). Este mecanismo não existe no Brasil e o desafio é convencer o governo federal a adotá-lo.
O produtor está no vermelho
A lavoura do Rio Grande do Sul vive um momento de extrema competência produtiva, mas sem competitividade devido ao custo país. A constatação é do produtor Walter Arns, que defende a redução drástica de tributos federais, estaduais e municipais.
A pergunta que ele endereça ao governo – e que ele mesmo responde – é: “A atividade arrozeira na Metade Sul gaúcha é ou não é importante econômica e socialmente? Se for, cabe aos governos baixarem os custos que estão em suas alçadas, porque o produtor já está reduzindo todos os gastos que estão ao seu alcance. Está produzindo com menor custo possível e com o máximo de produtividade e competência e, apesar de todo esse esforço, não consegue ser competitivo”.
Arns também enumera uma série de gastos que pesam sobre o ombro do produtor e que vão além da tributação e do alto custo Brasil, comprometendo a competitividade do arroz gaúcho – uma lista que vai do aumento da energia elétrica ao reajuste de salários, além de problemas como os cartéis nas áreas de fertilizantes, insumos e máquinas, devido aos altos preços da soja e do milho no mercado internacional, apesar de o arroz estar com preços baixos.
Esta dinâmica, segundo ele, “está estimulando o plantio nos países do Mercosul porque lá eles produzem visando o mercado brasileiro, porém a um custo país bem menor do que o nosso”, compara. Na visão do produtor, o governo não quer dar sustentação aos preços “até mesmo porque isso geraria estoques cada vez maiores a serem administrados, gerando um problema para o futuro”, aponta. Assim, os produtores seguem no vermelho.
É hora de ajustar
O mercado de arroz, a exemplo dos mercados de milho, soja e demais grãos, é um só – e é mundial. Esse mercado mundial tem um preço mundial. No entanto, diferente de milho e soja, esse preço raramente serve para o produtor de arroz brasileiro.
Mas se o preço internacional serve para todos os produtores do mundo menos para os produtores brasileiros, onde estará o problema, nos outros ou em nós? Nós acreditamos que o problema não está no mercado e nem no seu preço – que apenas reflete uma determinada realidade.
A nossa dificuldade está na forma como chegamos a esse mercado e nas condições em que nos apresentamos para competir. Enquanto um produtor brasileiro gasta US$ 2.200 para produzir um hectare de arroz, um uruguaio gasta US$ 1.600, um paraguaio US$ 1.400 e um Argentino US$ 1.350. Como podemos competir com custos tão elevados?
Esses custos não estão dentro das propriedades, mas fora delas, na assimetria tributária e na logística. Quase 25% do custo de produção de arroz é imposto direto. Há ainda todos os impostos indiretos, como os impostos sobre os insumos.
Enquanto um produtor gaúcho paga, em média, cerca de R$ 60,00 para transportar uma tonelada de fertilizante ou arroz, um argentino paga R$ 34,00. Essa diferença logística e tributária faz com que tenhamos um custo muito maior e nos apresentemos para concorrer em condições desfavoráveis em relação aos nossos concorrentes.
O preço do arroz, provavelmente, continuará bem abaixo do da soja, por uma razão simples: a renda per capita média dos países que produzem soja é muito maior do que a renda média dos países produtores de arroz – e o mesmo vale para os países consumidores. Sendo assim, o preço de equilíbrio do mercado de arroz tende a ser em ponto bem abaixo do ponto de equilíbrio da soja.
Por essa razão é que esse problema não se torna tão visível na soja quanto é no arroz. Sem dizer, é claro, que, no grupo dos produtores mundiais de arroz, o Brasil é um país rico, razão que o obriga a ser ainda mais eficiente fora da porteira.
Enquanto nossos concorrentes abriram estradas, ferrovias, rodovias, portos, aeroportos, baixaram impostos sobre a produção e modernizaram sua legislação logística, o Brasil fez quase nada, e agora está na hora do ajuste.