Clearfield na encruzilhada
Pirataria congelou lançamentos. Basf cobra royalties.
A mais eficiente tecnologia de controle de invasoras em lavouras de arroz do Brasil está fora do alcance dos produtores. A Basf suspendeu o lançamento do sistema Clearfield para pré-germinado em Santa Catarina e não deve lançar, em curto prazo, o sistema para terras altas, no Centro-oeste, ou nova variedade no Rio Grande do Sul. A ordem ficou restrita aos centros de pesquisas responsáveis pelo desenvolvimento das cultivares tolerantes ao herbicida. Por trás da decisão está uma verdadeira guerra entre a tecnologia legal e a pirataria de sementes e herbicidas.
A Basf faz uma ofensiva para receber royalties sobre o uso da sua tecnologia que foi “pirateada”. Sementes da variedade Irga 422 CL foram salvas nas lavouras e por sementeiros clandestinos e são comercializadas no mercado negro. Herbicidas “similares” são usados para reduzir o custo. Estima-se que sejam cultivados 350 mil hectares fora do programa oficial. Destes, a Basf quer cobrar 5% sobre a produção. Quem usa o sistema original já paga royalties. Com essa medida, a empresa quer reduzir a área das lavouras com a tecnologia para 250 mil hectares.
A empresa tentou cobrar na safra 2005/2006, mas não conseguiu negociar com a cadeia produtiva. Em busca de um acordo, desconsiderou ingressar com ação judicial. E conseguiu abrir negociação. A cadeia produtiva atravessa a pior crise em 30 anos e não recebeu bem a cobrança. Em assembléia, os produtores julgaram ser justo pagar pelo uso da tecnologia, mas só em valores compatíveis com a atual situação da lavoura.
PROBLEMAS – Enquanto Basf e cadeia produtiva negociam, novos problemas surgiram. O excesso das cultivares Irga 422 CL e “genérico” causou rebaixamento de preços em algumas indústrias. Segundo o Irga, são casos de indústrias que trabalham com variedades nobres e já atingiram o volume programado de 422 CL em seus armazéns. A indústria diz que o “arroz Clearfield” apresenta mais “barriga branca” e gessamento. Isso provoca reprocessamento e maior custo. A redução de preços pode, sim, ser motivo de diminuição da área de arroz pirata na próxima safra.
Positivo X negativo
Principais vantagens
• Controle do arroz vermelho,preto e invasoras secundárias • Programa de controle de pureza varietal e qualidade das sementes
• Orientação para o manejo mais adequado • Tecnologia que pode ser melhorada
• Recuperação de áreas nobres • Boa qualidade industrial
Principais queixas
• Cotação menor do que a variedade da qual deriva, o Irga 417 • Acamamento
• Desuniformidade de cocção dependendo do ponto de colheita • 60% da lavoura do RS – predominância de variedade
• Pirataria e utilização desregrada,ilegal e com produtos não recomendados • Residual do princípio ativo
• Preço da semente e do herbicida original • Risco de surgimento de uma superinvasora
Questão básica
A concentração de uma mesma cultivar em grande parte da lavoura de um estado é considerada um risco pelos cientistas. Segundo eles, além do problema de mercado, por superofertar uma mesma variedade e permitir a barganha da indústria, existem problemas agronômicos. No caso do uso de Irga 422 CL e seu “genérico” começaram a ocorrer problemas como doenças pouco significativas para a cultura, como cárie ou falso-carvão. “Sob pressão, a natureza tende a selecionar algumas invasoras e desenvolver fungos e doenças. Por isso, não se recomenda utilizar uma mesma variedade nem na lavoura do produtor”, frisa Paulo Rangel, pesquisador da Embrapa Arroz e Feijão. Sem contar que está colocando em risco a eficiência dessa ferramenta. “Se o uso incorreto continuar, em uma ou duas safras já teremos problemas com uma invasora tolerante ao herbicida”, avisa Valmir Menezes, pesquisador do Irga.
Sobrevivência e risco
O uso de sementes e herbicidas piratas por arrozeiros gaúchos não foi uma simples opção. Para muitos deles é uma questão de sobrevivência. “Com a lavoura infestada por arroz vermelho, dívidas, preço baixo e sem recursos para entrar no programa oficial, os produtores se obrigaram a entrar no pirata. O sistema foi tão eficiente que em duas safras tomou conta do estado”, destaca um produtor da depressão central.
Segundo ele, se os preços na safra de lançamento não fossem tão altos – R$ 280,00 o litro do herbicida -, a pirataria seria menor. “Muitos obtiveram a tecnologia pirata no primeiro ano e foram só salvando. Deu certo e os outros passaram a usar”, revela. Na segunda safra, o herbicida caiu para R$ 60,00 o litro, mas o “paralelo” já havia se popularizado.
Os produtores, no entanto, estão desviando o foco do arroz vermelho, pois a maior parte das áreas já está limpa ou com infestação mínima. A prática está sendo adotada para reduzir custos com aplicação de herbicida. “É uma passada e está pronto”, avisa o produtor. Todavia, isso pode implicar em custo ambiental – potencialização do residual do princípio ativo do veneno e danos à próxima lavoura – e na perda de segurança do sistema. O uso indevido pode estar gerando uma invasora com tolerância ao herbicida. Um arroz vermelho muito mais agressivo e tolerante aos sistemas de controle.
Cuidado com o manejo
Tão importante quanto utilizar as sementes certificadas e o herbicida recomendado é executar o manejo correto da lavoura, de acordo com as condições exigidas pelo sistema Clearfield. O alerta é da pesquisadora Mara Lopes, do Programa de Melhoramento Genético do Instituto Rio-grandense do Arroz (Irga). Nesta safra foram verificados muitos efeitos desse descuido.
O principal resultado gerou reclamações sobre a variedade Irga 422 CL. “Nesta safra houve muitos casos de acamamento”, revela, garantindo que isso aconteceu devido à alta densidade de semeadura ou adubação nitrogenada elevada. Interferiu também uma grande infestação do cascudo-do-arroz, que na sua fase adulta ataca as folhas da planta, fazendo com que fiquem caídas para os lados.
Outro fator que pode ter contribuído para produzir efeitos não desejados é o uso de sementes pirateadas e herbicidas similares ao original. Desde a apresentação do sistema Clearfield, o Irga e a empresa têm destacado os riscos para quem opta por essa alternativa ilegal.
Mara Lopes informa que foram registradas, na região de São Borja, algumas reclamações sobre a cocção de arroz produzido a partir das sementes do Irga 422 CL. Por isso, testes serão realizados pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) para confirmar o problema. É o mesmo procedimento adotado no ano passado, quando aconteceram reclamações do litoral norte, não ratificadas nos ensaios de laboratório. “Por isso, podemos dizer que o cereal é de excelente qualidade”, assegura a melhorista.
Em compasso de espera
A decisão da Basf ainda não afetou diretamente, mas preocupa os pesquisadores da Embrapa Arroz e Feijão que trabalham no desenvolvimento de cultivares resistentes a herbicidas e que apresentem boas características agronômicas e industriais para o sistema Clearfield.
Nesse ambiente não há problemas com arroz vermelho, mas ocorrência de outras plantas daninhas que impedem a consolidação do cereal no sistema de produção do Centro-oeste. O sistema Clearfield é visto como uma opção redentora. Na Embrapa também são conduzidos estudos com um gene de segunda geração, mais eficiente. Os pesquisadores desconhecem para qual produto da Basf desenvolvem as variedades. A fabricante não disponibiliza frascos, apenas envia moléculas para os experimentos. Para evitar a pirataria, os cientistas tentam obter cultivares específicas para determinado herbicida, não funcionando com outros similares que possuam o mesmo princípio ativo.
Santa Catarina – Por causa do impasse na lavoura gaúcha, a Basf colocou em espera os trabalhos em parceria com a Epagri de Santa Catarina. A parceria desenvolve uma cultivar do sistema Clearfield própria para o sistema de plantio de arroz pré-germinado. Tecnicamente faltam apenas algumas avaliações para colocar a nova variedade no mercado na próxima safra.
Perguntas
A Basf pode parar caminhões, entrar em propriedades e silos para testar o produto?
Não. Mesmo tendo os direitos sobre a tecnologia, a empresa não tem poder de polícia. Isso só pode acontecer mediante decisão judicial e por iniciativa das autoridades competentes. E o produtor tem garantido o direito de ampla defesa.
Tem diferença entre a variedade Irga 422 CL e a “salva” na lavoura?
Tecnicamente, não. A diferença está no fato da semente vendida pelo Irga ter alto grau de pureza varietal e a “salva” ter contaminação de outras variedades e inços. O risco de cruzamento com o arroz vermelho existe e o produtor pode estar “salvando” uma superinvasora. Como a indústria vem verificando problemas de qualidade com a variedade, há suspeita de que os “piratas” vendam no mercado negro sementes de linhagens com o gene, mas rejeitadas no programa de melhoramento por falta de qualidade. Essas linhagens poderiam ter sido furtadas dos experimentos, multiplicadas e agora vendidas como “22”.