Incentivo à descentralização

 Incentivo à descentralização

Morceli: referenciais acima dos custos variáveis

Governo planeja mudar
o mapa da produção de
arroz para facilitar
logística e reduzir
custos de transporte.

A manutenção do preço mínimo do arroz para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina nos patamares atuais (em R$ 25,80/50 quilos) e seu reajuste nos demais estados produtores, que na lógica do governo funciona como uma ferramenta de incentivo à descentralização do cultivo, é respaldada pelo seguinte argumento: no passado, se incentivava exclusivamente a cultura do cereal nas lavouras gaúchas porque no ecossistema de várzeas era a única cultura viável.

Agora, no entanto, as pesquisas mostram que é possível cultivar soja e milho nestas áreas, como alternativas rentáveis aos produtores, que passam a não depender da monocultura arrozeira. Assim, para o governo federal, surge a oportunidade de incentivar o deslocamento da produção arrozeira para outras áreas do país e resolver dois problemas ao mesmo tempo: logística e abastecimento.

“Para que isso fosse possível, tivemos que vencer alguns desafios: o primeiro deles foi tirar o arroz do conceito de produto de abertura de áreas de derrubada da floresta amazônica, fato que já está superado, tanto por ter tornado os produtores mais profissionais, quanto pelo melhor controle do uso da terra. O segundo foi a questão do uso do solo, especialmente gaúcho, com outras culturas. Veja que isso não foi feito sem um belo e eficiente planejamento”, explica Paulo Morceli.

CUSTOS

Segundo ele, concentrar o abastecimento de arroz no Sul é oneroso e implica em dois custos fundamentais: “O primeiro, palpável, é o de logística. Para escoar um fardo de 30 quilos de arroz do Rio Grande do Sul para Pernambuco, por exemplo, o custo é de aproximadamente R$ 6,00, ou seja, cerca de 10% do preço de mercado. Não há a menor dúvida que é extremamente relevante. Além disso, tem outro aspecto muito grave: a questão da insegurança alimentar. Todos sabem que o arroz é um dos grãos mais consumidos no Brasil e cerca de 75% da produção concentra-se em uma região com ecossistema idêntico e próximo. Um evento climático grave, seja seca ou enchente, traz os problemas já conhecidos e é obrigação do governo tentar superá-los”, compara o superintendente.

Para Morceli, não há dúvidas de que essa medida irá dar respostas a longo prazo. “Sabemos que existem muitas áreas aptas para o plantio de arroz irrigado fora do Rio Grande do Sul e Santa Catarina e, com preços mais vantajosos, o perfil da produção irá modificando e, o que é melhor, sem trazer qualquer problema para o produtor gaúcho, pois irá reconverter parte de sua produção de arroz para milho e soja, deixando de se submeter à competição acirrada do arroz argentino e uruguaio e sem os elevados custos de logística”, pondera.

CONFIGURAÇÃO

Esta nova configuração, conforme Morceli, permite a redução do custo de logística, com menor uso de combustível fóssil, geração de melhor nível de poluição, menores preços para o consumidor, melhoria da renda da população e redução da inflação. “Para o produtor gaúcho, a vantagem está na possibilidade de sair do jugo de um único produto e de um único mercado. Deverá apenas fazer a reconversão de suas áreas e sistemas produtivos”, justifica Morceli.

Ponto e contraponto

Os argumentos do superintendente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Paulo Morceli, acerca de uma futura descentralização da produção arrozeira nacional são contestados pelo presidente da Federarroz, Henrique Dornelles: “A distribuição do arroz torna-se altamente onerosa e antieconômica porque não temos logística”, afirma.

Ele insiste que “nosso sistema modal é praticamente o mesmo de 20 ou 30 anos atrás. Transportamos produtos de baixo valor agregado por rodovias. Há um monopólio no sistema ferroviário agravado por uma demanda muito superior à capacidade de atendimento. A navegação por cabotagem praticamente inexiste, também pelos altíssimos custos de combustível e tributação perversa. E quando observamos uma notícia de construção de uma nova rodovia ou até ferrovia, que seria importante, normalmente estas são acompanhadas por escândalos de corrupção”, contrapõe o dirigente.

Dornelles também frisa que o argumento das alternativas de produção para o arroz é precipitado. São tecnologias em consolidação, em fase de testes, experimentos, geração de variedades e sistemas de manejo. E adotados exatamente para recuperar a área de arroz, afetada por inços resistentes. “Para investir nessas tecnologias, cobrir o custo de produção, agregar qualidade e produtividade à sua lavoura e ainda pagar dívidas históricas, o arrozeiro, que dá segurança alimentar ao país, com 75% do arroz produzido no Brasil, precisa ser valorizado”.

Segundo Dornelles, quando os arrozeiros gaúchos e catarinenses buscam alternativas de produção, estão tentando viabilizar a lavoura de arroz e, principalmente, deixar de depender de recursos públicos em épocas de crise. “Ao invés de sermos penalizados por medidas como a estagnação dos preços mínimos há cinco safras, deveríamos era ser premiados pelo que representamos à cesta básica e à mesa do brasileiro”, afirma.

Indicador desgastado

O diretor da AgroTendências Consultoria em Agronegócios, Tiago Sarmento Barata, também considera que a medida do governo foi tomada com o objetivo de pulverizar a produção brasileira de arroz, estimulando o desenvolvimento do setor produtivo em regiões menos tradicionais. “Há no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) um entendimento de que a concentração da produção de arroz no sul do país é prejudicial ao abastecimento nacional, exigindo maiores esforços logísticos e acarretando em elevação de custos ao consumidor final e ao próprio governo. O estabelecimento da unidade voltada ao arroz da Embrapa em Goiás, há mais de 30 anos, evidencia que, para o governo, desenvolver a produção do cereal nas regiões mais próximas aos centros consumidores é uma questão estratégica”, observa.

Barata explica que, na visão do governo, o fato de o orizicultor gaúcho agora ter outras alternativas de culturas para as áreas de várzea invalida um argumento que justificava uma certa “proteção” aos arrozeiros gaúchos e catarinenses. Mas a questão, segundo ele, é um pouco mais complexa: “Estabelecido por meio de decreto presidencial, o preço mínimo deveria garantir renda e cobrir os custos de produção ao agricultor, além de ser uma referência para as aquisições governamentais. Na prática, vemos o preço mínimo como um indicador desgastado, perdendo cada vez mais a sua relevância ou influência no mercado”, comenta.

Para Tiago Sarmento Barata, se o objetivo deste referencial de preços do governo é garantir renda ao produtor, ele precisa levar em consideração o real custo de produção, que há mais de dois anos não é levantado por um organismo oficial. A cadeia produtiva e o governo também têm divergências quanto aos critérios de formação do custo de produção.

Punidos pela eficiência

O deslocamento da produção orizícola para outros estados é um dos principais pontos contestados pelo presidente da Federarroz, Henrique Dornelles: “Realmente, este assunto do preço mínimo deve estar incomodando a todos os arrozeiros gaúchos, principalmente o governador Tarso Genro e o secretário da Agricultura, Luiz Fernando Mainardi. Antigamente, quando produzíamos 5 mil quilos por hectare, éramos pouco eficientes e até concordo que nosso arroz era caro.

Hoje produzimos 8 mil quilos por hectare, com estabilidade de produção e qualidade. Nossos solos são dedicados ao arroz e estamos evoluindo na produção da soja e milho na várzea, uma ferramenta para o produtor que é complemento do manejo, não uma justificativa para a Conab promover o congelamento do preço mínimo”, afirma.

Para Dornelles, outro aspecto que deve ser levado em consideração nessa discussão é a “incontestável” qualidade do arroz gaúcho. “É incontestável porque é irrigado, e é irrigado porque é gaúcho, porque temos a cultura do aguador, do taipeiro, e desenvolvemos tecnologia de ponta. Nosso sistema de armazenagem é específico e de qualidade, assim como nossas indústrias de beneficiamento. As marcas de ponta são gaúchas. Quem compra arroz do RS sabe exatamente o que vai consumir. Não é uma caixa de surpresa.

Nosso arroz possui aroma e paladar. Pode ser consumido logo após a colheita, dependendo do capricho do produtor e da cultivar. Estas, inclusive, são características que pouco exploramos em termos de marketing”, admite.

Ainda na visão do dirigente, o setor vive um momento de reflexão sobre a perfeita e harmoniosa utilização dos recursos ambientais. “Temos a maior radiação solar, recursos hídricos em abundância e com qualidade, muitas das barragens feitas pelos produtores para armazenar água da chuva que ia para o mar, menor necessidade de aplicação de defensivos entre o período reprodutivo até a maturação do grão, maior relação entre o quilo do grão produzido por hectare, terras com aptidão, sendo que muitas delas não admitem outra cultura ou oferecem alto risco. É só verificar a área plantada e a produção de soja em algumas cidades como Alegrete, Uruguaiana e Quaraí”, aponta.

Pressão e revisão

As lideranças setoriais e políticas gaúchas e catarinenses já deflagraram uma campanha para que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) revise a decisão de congelar os preços mínimos do arroz para os dois estados, que representam 75% da produção nacional, e argumentam que são exatamente estes estados fundamentais para a segurança alimentar brasileira.

O setor produtivo entende que o congelamento do preço mínimo é uma medida de desestímulo, uma vez que há um grande esforço dos produtores em não aumentarem a área plantada para não prejudicar o mercado, optando por investirem, do próprio bolso, em inovadoras tecnologias para o cultivo de soja e milho.

O vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Santa Catarina (Faesc), Enori Barbieri, reconhece que a manutenção do preço mínimo no atual patamar teria impacto maior se as cotações estivessem baixas, e alerta: “Este ano, como os preços remuneraram, os produtores catarinenses, pelo menos os mais capitalizados, já adquiriram insumos para a próxima safra, prevendo um aumento nos custos de produção e uma possível redução nos preços do grão por causa do crescimento dos estoques mundiais. Então temos que cuidar para não aumentar muito o volume produzido, que deve superar o anterior por ganho em produtividade”, recomenda.

O produtor de Tapes (RS) Juarez Petry de Souza compartilha da mesma preocupação sobre a próxima safra gaúcha: “Quando existe problema de comercialização, como na safra passada, e o governo precisa lançar mecanismos, ele se agarra ao preço mínimo, que há sete anos não é reajustado. E se a próxima safra for cheia? E se colhermos 9 milhões de toneladas? É óbvio que os preços vão cair, podendo ficar abaixo do custo de produção, inclusive. Aí precisaremos dos mecanismos. Penso que o preço mínimo tem que ser R$ 32,00, R$ 33,00”, avalia.

Governo descarta congelamento

A reação do setor produtivo à medida já está rendendo algumas dores de cabeça aos técnicos do governo. O secretário de política agrícola do Mapa, Neri Geller, porém, reconhece que existem algumas divergências em relação à questão: “Em primeiro lugar, não existe congelamento do preço mínimo. Ocorre que alguns produtos, como o algodão e amendoim, não entraram na pauta do conselho porque os valores ainda não estão analisados. A definição do valor do preço mínimo para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina passa por uma discussão técnica, envolvendo os ministérios da Agricultura, da Fazenda, Planejamento e o Tesouro Nacional. O governo está atento a todas essas questões e não vai deixar os produtores do Sul desassistidos”, garante.

Paralelamente, o setor produtivo, incluindo as cadeias de grãos, leite e carne, começa a se articular em todo o país para pressionar o governo. “A exemplo das manifestações que estão acontecendo em todas as cidades brasileiras, o setor rural, que ainda não havia se manifestado nacionalmente, também pretende mostrar seu poder de mobilização. A ideia é aproveitar a Semana da Independência, em setembro, para lançar um movimento que estamos chamando de A Semana da Dependência. Uma das estratégias estudadas é suspender a venda de produtos agrícolas por alguns dias como forma de chamar a atenção do governo e da população para os problemas da agricultura”, adianta Juarez Petry de Souza.
Ao que tudo indica, a polêmica envolvendo o reajuste do preço mínimo nos dois maiores estados produtores de arroz do Brasil está longe de ser uma questão encerrada. Muito pelo contrário, a discussão está só começando. Mesmo dentro do governo há o debate estabelecido, considerando que parte quer controlar a inflação a qualquer preço e parte é mais sensível aos problemas da lavoura arrozeira.

O certo é que, ao mesmo tempo que o governo federal força uma venda de estoques alegando o risco do crescimento da inflação, dificilmente irá aceitar discutir a alta dos valores do preço mínimo.

Automaticamente, estaria criando um lastro de segurança que manteria uma margem estreita entre a garantia de piso para os preços do cereal e a meta de preços ao produtor para que, ao longo da cadeia produtiva, até o consumidor, estes não venham a colaborar para aumentar a inflação.

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