Inflação e desemprego afetam até o básico feijão com arroz na pandemia
(Por Paula Soprana, Leonardo Vieceli e Daniela Arcanjo/FolhaPress) Nem o feijão com arroz escapou da alta da inflação e do desemprego. A combinação de aceleração de preços e renda em queda mudou o cardápio dos brasileiros mais pobres, que se veem obrigados a optar por produtos mais baratos.
Saem óleo de soja, feijão e carne; entram banha de porco, lentilha e ovo. Até o preparo da alimentação foi afetado.
Com o botijão de gás a mais de R$ 100 em algumas cidades, muitas famílias trocaram o fogão por lenha e carvão.
Enquanto numa ponta os preços sobem, na outra a renda cai. Além da redução do valor do auxílio emergencial, a taxa de desemprego atingiu o patamar recorde de 14,7% no trimestre encerrado em abril.
Reflexo desse cenário, aumentou a oferta de arroz quebrado e bandinha (o meio feijão), substitutos mais baratos para o produto padrão. Cestas básicas também têm contado com uma mistura maior desses produtos com os tradicionais.
Bárbara da Silva, 19, de Heliópolis, favela na zona sul da capital paulista, é uma das que têm dependido de doações. Mãe de um menino de dois anos, ela está sem emprego, e o marido, que trabalha como marceneiro, não tem encontrado muitos serviços. Assim, a família riscou frutas, verduras e iogurtes da lista.
De acordo com Ana Maria Segall, coordenadora de relações internacionais da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), frutas e verduras são os primeiros alimentos que as pessoas retiram do cardápio em uma situação de insegurança alimentar –quando não há acesso pleno e seguro a alimentos de qualidade conforme a dieta de uma população. Em seguida, são retirados a carne e os derivados de leite.
Uma foto de um saco do produto da marca Rampinelli viralizou na última semana acompanhada por um questionamento da qualidade do alimento. No entanto, afora a aparência, não há diferença em termos nutricionais para outros tipos de arroz. O produto costuma ser usado em sopas, canjas e ração animal.
No caso do feijão, a indústria –afetada por um ano mais seco e de geada– apostou no bandinha, que sai por valores inferiores a R$ 5 por quilo, enquanto o produto padrão se aproxima de R$ 7. Outro produto cujo consumo despencou foi a carne bovina, paralelamente à redução do auxílio emergencial. “A queda nas vendas beira 40% nos últimos meses, enquanto a de frango dobrou –e olha que aqui o povo come carne de boi”, diz Ildeu Afonso, que tem um açougue na periferia de Cuiabá (MT).
Na cidade, há registro de filas para doações de restos de ossos de boi durante a pandemia. Em 2020, o consumo de suínos, aves e ovos cresceu 5,5%, 6,5% e 9,1%, respectivamente –valores que se mantiveram estáveis no primeiro trimestre deste ano, de acordo com a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal). Enquanto isso, o consumo de carne bovina caiu 7%.
A cesta dos mais pobres também passou a ter mais apresuntado, empanado e pão industrializado. Segundo a consultoria Kantar, o consumo desses itens na classe D/E cresceu 14,8 e 11 pontos percentuais, respectivamente, entre março de 2020 e de 2021.
O cenário contrasta com o vivido por essas classes nas duas últimas décadas. De 2004 a 2013, famílias viram a renda média crescer junto a uma maior distribuição de renda, o que permitiu uma melhora do padrão de consumo.
Desde 2015, porém, há uma reversão desse quadro, agravada pela pandemia. “A partir do segundo trimestre de 2020, esse processo se radicalizou. Todos perdem, mas quem está na base perde proporcionalmente mais”, diz
André Salata, professor do programa de pós-graduação em ciências sociais da PUCRS. Para ele, é preciso manter o auxílio emergencial a curto prazo e recuperar o mercado de trabalho a longo. Embora a alta de preços ocorra para todas as faixas de renda, ela é mais sentida pelos mais pobres, cuja cesta de consumo é composta principalmente por alimentação, transporte e energia –os vilões da inflação nos últimos meses.
Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que os mais pobres sentem mais a escalada de preços na pandemia. Segundo o instituto, a faixa da população com renda considerada muito baixa (inferior a R$ 1.650,50 por mês) registrou inflação de 9,24% no acumulado de 12 meses até junho. É a maior variação entre os seis grupos pesquisados.
Morador de Franco da Rocha, ele divide o terreno com a ex-mulher e quatro filhos. Além da energia, ele destaca o preço do gás. “Ontem eu fui queimar lenha [para cozinhar] e meu vizinho reclamou da fumaça. Está tudo muito difícil”, afirma.
Desempregados dependem de doações para se alimentar
Na casa em que mora com os quatro filhos e o marido na Favela do Pullman, na zona sul de São Paulo, a autônoma Fernanda Cristina Beccare, 38, deixou de comer coisas simples que gostava como cuscuz e sardinhas enlatadas. A dieta dela está restrita ao básico, como arroz e feijão. Mesmo assim, só consegue comida por causa de doações de organizações sociais.
Apesar de contar com ajuda, ainda faltam itens essenciais, como produtos de higiene pessoal e roupas, ainda mais com o clima mais frio do inverno. “Se já estava difícil para arrumar serviço antes da pandemia, agora piorou”, afirma. “Como se não bastasse, as coisas estão absurdamente caras. E como comprar sem trabalhar?”
Pés de frango, língua, músculos, peixes mais baratos e cortes suínos também entraram na dieta da periferia. “Compramos o mais barato. No açougue são sempre as carnes mais baratas, quando não é ovo”, comenta a auxiliar de escritório Tomásia Aparecida, 57, do Grajaú, zona sul de São Paulo. “Ultimamente tenho comprado itens de feijoada. E só o que resta e sai mais barato, como fígado, peixe e pé de frango.”
Na mesma região, Leia Santos, 45, se define como mãe e pai dos quatro filhos. Com renda de R$ 398 do Bolsa Família, gasta R$ 350 de aluguel. Os R$ 48 que restam é o que ela tem para comida. “Hoje o que mais temos em casa é arroz, feijão e ovos. Mistura não tem porque só dá a cartela de ovo mesmo”, afirma. Nos grupos de mensagens do bairro, desabafos de situações como a falta de luz em casa ou não conseguir dar comida aos filhos são comuns. “Já não aguento mais tanto sofrimento, minha bebê sem leite desde ontem. Consegui colocar ela agora pra cochilar depois de muita luta porque ela só chora com falta da mamadeira. Só tem nove meses”, escreveu uma mãe em uma das publicações.
Outras pessoas pedem indicações de onde há doações. Responsável por um projeto com sede no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, Jedderson Johny dos Santos, 29, confirma que a pandemia escancarou uma realidade já existente na periferia. “Alimentos faltaram para famílias que havia tempos não sabiam o que era sentir essa sensação”, comenta. “Junto a isso foram perceptíveis a exclusão digital e a dificuldade do poder público de dialogar com as periferias da cidade para ouvir delas o que de fato faz falta.” Ele diz que o grupo pretende discutir o assunto com autoridades. “Não é justo essas iniciativas partirem somente das favelas.”
Uma das beneficiadas pelo trabalho é a diarista Evelyn Gomes do Nascimento, 31, que se diz atingida de todas as formas pela pandemia. Moradora do Jardim Record, em Taboão da Serra (região metropolitana de São Paulo), ela e o marido estão desempregados. “Venho comprando só o básico, como pão, leite e fralda.” Ela cita que carne e feijão são luxos que só são comprados quando há promoção. No lugar do feijão, entra a lentilha. A única renda com a qual a família pode contar mensalmente são os R$ 275 do Bolsa Família.
Para economizar, o casal reduziu o tempo do banho e desligou a TV. “A gente focou a economia porque não tem de onde tirar.” O projeto, diz, garante a alimentação dos dois filhos. “Com o que consigo a mais supro outras necessidades.” A crise se repete na casa da autônoma Taciana Silva Mattos, 31, em Curucutu, bairro de São Bernardo do Campo (ABC Paulista), onde vive com o marido. “Compro só o básico quando tenho dinheiro”, diz.
Ela vende maquiagens, mas nem sempre rende o suficiente para pagar as contas e bancar a casa. O marido, mecânico, não é registrado e só recebe quando tem serviço. Com a pandemia, ele trabalha cada vez menos.
Entre as mudanças na casa, têm trocado o arroz pelo macarrão. O óleo aparece cada vez menos no armário da casa; como alternativa, Taciana usa toucinho. “Assim economizo.”
A compra do mês por lá deixou de ter vários itens que eram ela considerava simples e essenciais, como carnes, legumes e frutas. Mas o problema vai além. “Tive várias crises de ansiedade resultando em depressão. Me afetou, não só financeiramente mas mentalmente.” Pesquisa do Procon-SP aponta que, entre fevereiro e março, 70% dos entrevistados tiveram diminuição em sua renda individual. Além disso, 87% disseram que os gastos habituais tiveram aumento na pandemia, principalmente na alimentação (71,47%).
No ano passado, a cesta básica subiu 31% em São Paulo, segundo levantamento do Procon-SP/Dieese. Também pesam contas de consumo, como, água, luz e gás. Além das dificuldades cotidianas, Pereira, do CEP, diz que o adiamento dos sonhos têm sido a realidade nos bairros mais pobres. “A compra de um carro ou a reforma da casa são coisas que ficam em segundo plano neste momento.” O auxílio emergencial, criado para apoiar famílias na pandemia, tem pago entre R$ 150 e R$ 375. O recurso criado ano passado por causa da pandemia foi retomado em abril e estendido até outubro.
2 Comentários
Realidade chocante nas periferias das grandes cidades, como relatada na matéria.
A fome rondando sempre a espreita das famílias menos afortunadas, pelo visto o auxilio emergencial foi de extrema valia para essas pessoas. Deveria continuar indefinidamente em vez de os recursos públicos irem vergonhosamente para um fundão com finalidade de gastos em campanhas eleitorais, nossos políticos em sua maioria, salvo exceções, deveriam ser banidos do país e seus bens cassados e distribuidos entre os mais pobres.
É revoltante ler este tipo de matéria e saber que nada é feito por um congresso irrigado a bilhões de reais e ainda dificultando a governabilidade e travando medidas sociais a fim de beneficiar os menos favorecidos!!!
Pura Verdade……