Mudanças climáticas impõem desafio à agricultura

 Mudanças climáticas  impõem desafio à agricultura

Concepción Calpe: analista da FAO

Economista sênior da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) há mais de 25 anos, Concepción Calpe já ocupou diversas funções na Divisão de Mercados e Comércio da ONU. De 1992 a 1998 foi secretária do Grupo Intergovernamental de Especialistas em Carne. Em 1998 tornou-se chefe do Grupo Arroz e Raízes e Tubérculos e secretária do Grupo Intergovernamental de Especialistas em Arroz. Em 2007 foi designada chefa da unidade básica de alimentos, supervisionando os mercados de trigo, cereais secundários, oleaginosas, óleos e gorduras, mandioca, carne e produtos lácteos.

Apesar da ampliação de suas responsabilidades, ela continua a ser responsável pelo acompanhamento da evolução da economia internacional do arroz com foco em segurança alimentar mundial e nacional. Os resultados de suas análises são divulgados na Food Outlook, uma das publicações estratégicas da FAO, e na FAO Arroz Market Monitor, bem como em outros relatórios da organização.

Nesta entrevista exclusiva concedida à revista Planeta Arroz, Concepción Calpe faz uma análise do mercado mundial do cereal em que aborda o papel do Brasil como exportador, o avanço das importações chinesas e o aumento do consumo nos países da África. Para a economista, um dos grandes desafios da agricultura em nível global é o desenvolvimento de tecnologias que ajudem a superar as restrições impostas pelas mudanças climáticas: “O aumento da temperatura média e da escassez de água em certas partes do mundo é particularmente preocupante, uma vez que pode implicar mudanças drásticas na produção agrícola, com consequências sociais e geopolíticas”.

Planeta Arroz – Um estudo recente apresentado pela FAO indica a possibilidade de, em duas décadas, o mundo passar por uma forte restrição da oferta de alimentos para atender à demanda de consumo. Que variáveis podem contribuir para este cenário?

Concepción Calpe – Até agora o mundo tem sido capaz de produzir alimentos suficientes. Os problemas de insegurança alimentar estão relacionados em grande parte ao acesso econômico a esses alimentos, ou seja, à distribuição de renda desigual dos países. Isso é confirmado pelo fato de que os preços dos alimentos mantiveram-se relativamente baixos em relação a outras matérias-primas do setor, o que implica que a oferta continua a ser ampla se comparada com a demanda. O aumento dos preços dos alimentos em 2007/08 foi, em parte, uma correção para os níveis muito baixos que prevaleciam até meados dos anos 2000, o que tinha sido uma das principais causas para a falta de investimento no setor agrícola.

Quanto ao futuro, especialmente em relação à capacidade do mundo para alimentar a população crescente, será preciso acatar as mudanças climáticas, o que será um grande desafio, a menos que os avanços tecnológicos ajudem a superar estas novas restrições. O aumento da temperatura média e da escassez de água em certas partes do mundo é particularmente preocupante, uma vez que pode implicar mudanças drásticas na produção agrícola, com consequências sociais e geopolíticas. No entanto, é muito difícil prever as mudanças no ambiente e só através de diferentes cenários esses impactos sobre a produção mundial de alimentos poderão ser avaliados.

Planeta Arroz – Em sua opinião, quais serão as regiões do mundo mais afetadas por uma possível escassez na oferta de alimentos?

Concepción Calpe – Os países do Oriente Médio terão de aumentar a sua dependência das importações para satisfazer as suas necessidades alimentares, como já estão fazendo agora. Embora estes países tenham câmbio suficiente, resultado das exportações de petróleo bruto, eles não podem enfrentar escassez de alimentos. Os problemas podem ser ainda muito mais graves na Ásia, onde a terra é escassa e os ganhos adicionais na produção de alimentos carecem de melhorias contínuas de produtividade, seja através de melhores práticas agronômicas ou a partir de outra “revolução verde”. Em relação ao arroz, acredito que a região tenha potencial para cobrir as suas necessidades e aumentar as exportações na próxima década.

Já os países africanos enfrentam menores restrições físicas para aumentar a produção agrícola, pois ainda têm muitos recursos de terra e água. Eles também precisam superar muitos desafios no que diz respeito à comercialização, processamento, infraestrutura logística, tecnologia e know-how, além da questão política, que também é crítica.

No entanto, como a economia está se tornando cada vez mais globalizada, é difícil acreditar que os outros continentes serão poupados de possíveis tensões. O aumento de preços em 2007/08 foi um bom exemplo, já que todos os consumidores tinham de pagar preços mais elevados para a sua alimentação em praticamente todos os países. É claro que os impactos eram muito mais fortes sobre as pessoas que destinaram uma grande parte de sua renda em alimentos. Naturalmente, estes países são os mais vulneráveis a um aumento dos preços dos alimentos.

Planeta Arroz – Neste contexto, qual é o papel do arroz em relação à segurança alimentar mundial?

Concepción Calpe – O arroz é, juntamente com o trigo, o principal alimento básico, especialmente para a Ásia e, cada vez mais, para a África, que tem vindo a desenvolver um gosto por arroz, substituindo alimentos tradicionais como milho ou mandioca. Mais uma vez, a menos que haja mudanças drásticas no ambiente em relação ao aumento das temperaturas médias e eventos anormais, como tufões e secas, ainda vemos que há potencial para a produção de arroz global aumentar o suficiente para atender o consumo mundial nos próximos 10 anos.

Planeta Arroz – Que fronteira agrícola vai ser capaz de atender a crescente demanda por cereais?

Concepción Calpe – Nas últimas décadas, a maior parte dos aumentos na produção de alimentos tem contado com ganhos de produtividade e muito menos com a expansão da área plantada. Não prevemos que isso mude nas próximas décadas. Os ganhos de produtividade precisam vir tanto do agricultor, na aplicação de melhores práticas agronômicas que liberam o potencial existente das variedades plantadas, quanto do desenvolvimento de novas variedades de arroz, mas mais adequadas às mudanças no ambiente externo. Por exemplo, muitos países estão investindo em pesquisa de variedades resistentes à seca e a longos períodos de submersão de água. Em alguns casos, essas variedades poderiam ser desenvolvidas com base em arroz geneticamente modificado (GM), mas não necessariamente, já que existe uma imensa variedade genética que pode ser obtida a partir de espécies de arroz silvestre. Assim, embora não haja nenhuma razão para criminalizar o arroz GM, os métodos tradicionais para chegar a existir novas variedades também devem ser explorados.

Planeta Arroz – Qual é o papel do Brasil nesse contexto?

Concepción Calpe – Desde o início da década de 80 o Brasil tem conseguido aumentar a sua produção de arroz, reduzindo a área plantada com a cultura, graças a um aumento dos rendimentos médios. Hoje, a maior parte da produção do Brasil vem de estados mais produtivos, em especial o Rio Grande do Sul. A cultura de sequeiro, tendo em conta os rendimentos muito pobres obtidos nas áreas do norte, pode não ser a melhor estratégia para o Brasil.

Planeta Arroz – Nos últimos anos, podemos observar um declínio no consumo per capita de arroz tanto em países da Ásia e da América Latina, especialmente no Brasil, à medida que cresce a renda média do cidadão. Como a FAO avalia estes movimentos e como projeta o futuro desta relação entre a renda e o consumo do grão?

Concepción Calpe – Nos países mais pobres, as famílias ainda tendem a aumentar o consumo per capita de arroz quando há incremento na renda. Em países mais ricos o aumento da renda tem impactado de forma negativa no consumo de arroz. Isto significa que as pessoas preferem diversificar suas dietas e usar a renda adicional para comprar outros produtos, como carne, legumes e peixes, ao invés de arroz.

Planeta Arroz – Qual deve ser o papel da China nos próximos anos para o mercado internacional do arroz?

Concepción Calpe – A China recentemente deixou de ser um exportador de arroz líquido para se tornar o maior importador de arroz do mundo. No entanto, o país, em sua maioria, depende da própria produção para atender grande parte de suas necessidades. Além disso, o aumento das importações da China não reflete realmente a escassez no país. Isto se deve à política de preços elevados do governo, que tem feito os preços domésticos muito mais elevados do que os preços internacionais, incentivando os comerciantes a importarem. Uma mudança desta política poderia mudar essa tendência. Assim, o papel da China no futuro dependerá muito mais das políticas de governo.

Planeta Arroz – A África tornou-se um grande consumidor de arroz do Brasil. As importações africanas têm sido fundamentais tanto para a manutenção da estabilidade de preços no mercado interno brasileiro quanto para os preços pagos aos produtores no Brasil. O que se pode esperar da África em termos de produção e consumo nos próximos anos?

Concepción Calpe – A África conseguiu aumentar a produção de arroz graças a grandes investimentos realizados no setor por empresas nacionais e estrangeiras. Ao mesmo tempo, no entanto, o consumo vem aumentando muito mais rapidamente, o que mantém as importações africanas em ascensão.

Planeta Arroz – Que avaliação é possível fazer entre a produção e o consumo de arroz no continente africano?

Concepción Calpe – Em 2013 estimou-se um volume de importações na região de cerca de 14 milhões de toneladas e a produção em 18 milhões de toneladas frente a uma demanda estimada em 31,5 milhões de toneladas.

Planeta Arroz – Como a senhora avalia o atual momento da orizicultura brasileira, que alcança o quarto ano como exportador líquido e se mantém tanto como exportador quanto como importador de arroz, assegurando o equilíbrio de seu mercado pelo escoamento de excedentes, e como isso vai afetar o mercado mundial de arroz nos próximos anos?

Concepción Calpe – O Brasil está em nono lugar entre os produtores mundiais de arroz. Todos os produtores classificados acima do Brasil são provenientes da Ásia. Entre os exportadores, o Brasil ocupa o oitavo lugar, com cerca de 800 mil toneladas beneficiadas embarcadas anualmente. No entanto, este volume é muito menor do que as exportações dos principais países exportadores, levando em consideração que os cinco maiores exportadores são responsáveis por mais de 80% do comércio mundial. É claro que a entrada do Brasil no mercado aumentou a concorrência, especialmente na África, onde os países asiáticos são muito ativos.

Planeta Arroz – O governo brasileiro registrará nesta temporada o menor estoque público em mais de uma década, com algo em torno de 150 a 200 mil toneladas do cereal em casca, quando já alcançou estoques superiores a 3 milhões de toneladas ainda neste período. A FAO considera que estes montantes atuais são adequados ou uma redução tão significativa, de alguma forma, pode afetar demais o mercado e a segurança alimentar?

Concepción Calpe – A principal preocupação da FAO é com o nível de estoques globais, não com o estoque de cada país. Enquanto as reservas mundiais forem amplas o suficiente – e elas são, o baixo estoque em um determinado país não é uma questão de preocupação, mesmo que isso possa ser um problema para um país individualmente.

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