No arroz não há espaço para aventureiros
Aos 78 anos, o bacharel em Direito e cooperativista André Barretto encerrou quase três décadas na presidência da Federação das Cooperativas de Arroz do RS (Fearroz) como um dos protagonistas desta cadeia produtiva, em novembro. Ingressou na atividade rural em 1976, com soja e arroz, em Rio Pardo (RS). Foi dirigente da Cooperativa Agrícola Rio Pardo (Coparroz) até 1998. Em junho de 1992 foi eleito para dirigir a Federação das Cooperativas de Arroz do RS (Fearroz), onde permaneceu até 2020. Um dos fundadores da Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz) e seu primeiro presidente durante dois mandatos, Barretto também fundou a Câmara Setorial do Arroz do Rio Grande do Sul, em 1992.
PLANETA ARROZ – Que batalhas considera fundamentais e que conquistas citaria como importantes em 30 anos de protagonismo no arroz?
Barretto – Foi uma longa jornada. O início, na Fearroz, coincidiu com o advento do Mercosul que, como sabemos, teve o arroz como o primeiro produto agrícola com mercado liberado. Não houve aviso prévio: do dia para a noite, num discurso, o presidente Fernando Collor jogou a nossa atividade numa fogueira como moeda de troca por outros produtos. Na época, foi fundada a primeira Câmara Setorial do Arroz cabendo à Fearroz coordená-la. Representamos o setor privado, do “Subgrupo 3 – Normas Técnicas” e “Subgrupo – 8 Política Agrícola” para o arroz no Mercosul. Foi um trabalho difícil ajustar normas que satisfizessem as aspirações dos quatro países interessados, Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai.
PLANETA ARROZ – Foi um momento difícil?
Barretto – Imagine a dificuldade para ajustar uma norma de classificação para o arroz aceita por todos os países tendo, ainda, que incluir o sequeiro, de terras altas, e o largo ancho argentino. Não era fácil obter-se a concordância de todos os setores. Era importante chegar às reuniões com posições definidas entre os estados e, depois, entre os quatro países. A Fearroz tomou a iniciativa e criou, em dezembro de 1992, a primeira Câmara Setorial do Arroz do RS, estado de maior influência como produtor.
PLANETA ARROZ – E como funcionava?
Barretto – Era uma Câmara preponderantemente privada e procurava alinhavar os temas internamente procurando leva-los às reuniões maiores já com consenso. Inumeráveis atividades tiveram a participação ativa da Fearroz. Daí, resultaram conquistas como a Securitização de Dívidas Rurais (Lei 9.138/95) e o Recoop (Programa de Revitalização das Cooperativas de Produção Agropecuária) em 1997. Isto solucionou o problema por um período, porque as causas, como veremos adiante, permaneceram.
PLANETA ARROZ – Mas, houve outras batalhas?
Barretto – Sim. Uma delas com o sólido e incondicional apoio do Sindarroz-RS e Sindapel, foi relativa a uma cobrança entendida como extorsiva pela utilização de semente de uma variedade de arroz desenvolvidas pelo Irga, mas alterada geneticamente por terceiros, tornando-a resistente a determinado herbicida. Era uma questão de interesse quase que somente da classe produtora, mas que foi sustentada pelo grupo liderado pela Fearroz, representando seus produtores-associados, e todo o setor industrial. Foi uma questão jurídica brilhante e vitoriosa, com duração de mais de seis anos, hoje esquecida nas gavetas da história, mas com consequências favoráveis ainda vigentes.
PLANETA ARROZ – A Federação sempre buscou a unidade.
Barretto – Por sua constituição influenciada pelos princípios do cooperativismo, a Fearroz prima pelo bom relacionamento com as demais entidades setoriais. Talvez daí tenha se justificado uma tendência de agregação, resultando em iniciativas como a de unir-se com a Fecotrigo, resultando na Fecoagro. Mais recentemente, a Fearroz participou da criação da Abiarroz, entidade nacional, vindo a presidi-la durante os quatro primeiros anos e permanecendo na vice-presidência durante seis anos subsequentes.
PLANETA ARROZ – Daí surgiu o projeto de exportação?
Barretto – As atividades da associação geram inumeráveis oportunidades, inclusive com programa aliado à APEX (Agência Exportadora de Promoção de Exportações e Investimentos) para criar, manter e desenvolver atividades exportadoras além de estudos para capacitação operacional e conquista de novos mercados com a marca Brazilian Rice, já consagrada internacionalmente.
Em tudo o que ocorreu no setor, a Fearroz esteve presente levando o peso de seu alto conceito e credibilidade.
PLANETA ARROZ – Como o senhor analisa esse 2020?
Barretto – O ano está influenciando, com acontecimentos inesperados e inéditos, a face da sociedade e muitos de seus costumes, abrangendo desde a intimidade das pessoas até conceitos macroeconômicos, passado por educação, segurança, hábitos alimentares, saúde, transporte, tudo, enfim. É o ano em que estamos recebendo o devido reconhecimento da sociedade para a importância do agro. Quando quase tudo parou, nossas atividades produtiva e transformadora seguiram na ativa atendendo às necessidades da nação e legando excedente para o exterior. Foi uma demonstração de competência inigualável. Em nenhum momento faltou qualquer produto à mesa da população suportando, inclusive, um natural aumento de consumo pela mudança forçada dos hábitos alimentares.
PLANETA ARROZ – E junto veio a mudança do patamar de preços…
Barretto – O aumento de consumo adveio após uma safra relativamente limitada e um estoque de passagem quase zerado. A alta de preços foi uma consequência, mas com abastecimento garantido até a próxima colheita. Alguma importação fez-se necessária, como medida preventiva e de controle de preços, em virtude do alto volume exportado, resultando na suspensão provisória da TEC – Tarifa Externa Comum. Essa medida não reduziu os preços, mas estabeleceu limite à escalada que se verificava, permitindo a continuidade regular da comercialização.
PLANETA ARROZ – Há 21 anos, o senhor disse que o futuro do arroz estava em criar sistema produtivo com rotação e integração com pecuária.
Barretto – Na época era evidente a necessidade de atividades complementares à do arroz. A monocultura trazia insegurança. Sempre cobramos do Irga pesquisa a respeito de soja. Muita coisa mudou nesses 21 anos. Na lavoura, constatamos um enxugamento proveitoso no número de produtores, permanecendo os melhores gestores. Isto foi bom, porque bons gestores só cultivam onde há segurança, boas terras e tecnologia que asseguram bom retorno ao esforço produtivo reduzindo riscos.
PLANETA ARROZ – E o arroz tem alto impacto da tecnologia.
Barretto – Não há futuro sem tecnologia e precisamos insistir para que a pesquisa continue na busca de soluções. Pesquisa é dispendiosa mas o setor dispõe de recursos pela cobrança compulsória do TCDO. Hoje, tais recursos são desperdiçados por deficiência de gestão e apropriação indébita pelo Estado. Chegamos a uma encruzilhada: ou o Irga passa por uma transformação dedicando-se à pesquisa, ou precisamos destinar os recursos para outra entidade que tenha finalidade compatível com nossos interesses.
PLANETA ARROZ – Quais os desafios da indústria nacional?
Barretto – As indústrias de arroz, incluindo cooperativas, têm futuro assegurado. Apesar de conflitos eventuais entre produção e industrias, há um vínculo indissolúvel que mantém uma interdependência natural e inevitável: não é possível o consumo de arroz com casca. Assim, uma primeira etapa a ser vencida entre esses dois elos da cadeia é o da compreensão mútua dos problemas e ajuste que regule produção, preço e segurança. Depois, o problema que assola e é comum a todos os setores produtivos: a exorbitante carga tributária e a guerra fiscal entre os estados, causando enorme insegurança pela mobilidade e sua imprevisibilidade. Ultimamente, as indústrias têm sentido forte pressão de Normas Técnicas impondo medidas de organização interna que, apesar de necessárias, são exageradas, e cuja implantação é acompanhada de urgência e custos incompatíveis com a situação do momento por que passa o setor. A área industrial do arroz passou por modernização espantosa nos últimos 20 anos. Hoje, numa indústria, ou cooperativa, você não encontra nem vestígios do que costumava ser um “engenho de arroz”, tamanha a introdução de tecnologia, asseio, qualidade e segurança na elaboração do produto final. Empresas que não se adaptaram às exigências do mercado desapareceram ou vegetam na marginalidade, numa área obscura, por mais algum tempo.